A excelente continuação do “good kid, m.A.A.d city” (2012) é irônica, triste, irritada e caótica – muitas vezes ao mesmo tempo.
O fenômeno Kendrick Lamar acabou de lançar o seu terceiro álbum de estúdio – “To Pimp a Butterfly” é o sucessor do universalmente aclamado “good kid, m.A.A.d city” (2012). Para aqueles que não são familiarizados, Lamar é um rapper de Compton, Califórnia, vencedor de 7 Grammy Awards. Embora ele tenha ganhado atenção com sua quarta mixtape, “Overly Dedicated” (2010), foi com o segundo álbum de estúdio que ele chegou à fama. Um projeto amplamente elogiado – descrito como um clássico moderno – , que narra parte de sua vida enquanto crescia em Compton. “To Pimp a Butterfly”, por sua vez, é meticulosamente trabalhado e apresenta um conteúdo lírico mais politicamente carregado. É um registro maduro e reflexivo com um grande crescimento artístico. Musicalmente, além do rap e hip hop, ele incorpora elementos de jazz e funk. Em suas letras, Lamar apresenta uma emoção crua, descrevendo realizações, inconsistências e falhas de caráter. Entre as variadas mensagens, o álbum faz apelos subjacentes referente ao empoderamento negro, a hipocrisia social e as tentações da fama. Dito isto, “To Pimp a Butterfly” é surpreendentemente inovador e criativo – ele ultrapassa qualquer limite imposto pela narrativa convencional da música popular.
A primeira faixa, “Wesley’s Theory”, é fortemente influenciada pelo funk. Em uma entrevista para a Rolling Stone, Lamar havia revelado o quão influente o funk dos anos 70 foi para a sonoridade do álbum. Como esperado, temos um fluxo narcótico que acompanha em perfeita concomitância a história contada. Inicialmente, “Wesley’s Theory” começa com leves sons de toca-discos e um canto distante de “Every Nigga Is a Star” (Boris Gardiner) que gradualmente fica mais alto e claro. Oscilações de guitarras e alguns jingles se juntam ao canto hipnótico enquanto mergulham profundamente na arquitetura P-Funk do colaborador George Clinton. O baixista Thundercat também aparece como contribuinte, ao passo que Dr. Dre fornece vocais adicionais através de uma mensagem de voz. Ele transmite sabedoria para Kendrick Lamar ao alertá-lo das dificuldades de manter o sucesso. O interlúdio “For Free?” traz rapidamente a primeira pitada de jazz para a jogada. O saxofone, o piano e o baixo impostos pela banda orquestral transmitem uma sensação jazzística agradavelmente otimista. Terrace Martin, filho de um baterista de jazz, lida com a produção, bem como é apoiado pelo pianista Robert Glasper. O acelerado fluxo do Kendrick Lamar caminha sob poesias faladas e frases repetitivas.
As letras não são tão compreensivas, mas podemos notar que possui um senso de auto respeito. Embora frases com temática sexual como “este pau não é livre” sejam repetidas várias vezes, é um interlúdio definitivamente bem-sucedido. “Kinga Kunta” é certamente uma das minhas faixas favoritas do álbum, principalmente por causa da forte batida e do pesado baixo funky. Ela me lembra algumas canções de rap dos anos 80 e apresenta fortes influência do hip hop da Costa Oeste e do G-Funk. Ademais, há amostras perturbadoras de “Get Nekkid” (Mausberg), elementos de “The Payback” (James Brown), interpolações de “We Want the Funk” (Ahmad Lewis) e letras de “Smooth Criminal” (Michael Jackson). Liricamente, temos um personagem chamado Rei Kunta que está chateado com as pessoas que estão sentadas no seu trono. Lamar começa com um discurso retórico, abordando outros rappers que tentaram tomar o seu lugar enquanto passou dois anos longe da indústria. O título é uma referência ao escravo rebelde Kunta Kinte, personagem base retratado no principal romance de Alex Haley. Semelhante a Kunta, Lamar sente que está sendo acorrentado e paralisado por outras pessoas da indústria – resultante de sua ausência na mídia. “Institutionalized” nos remete aos seus dois primeiros álbuns, embora siga o estilo funk predominante do repertório.
Produzida por Tommy Black, conta uma história frustrante de Compton, alternando entre personagens para representar determinadas lutas. Quando Lamar fecha seu primeiro verso, ele introduz o neo soul de Bilal, que canta o refrão. Essa estranha frase é cantada a partir da perspectiva da avó do Kendrick Lamar. No geral, ele fala sobre sua educação e como a mentalidade que desenvolveu na infância transcendeu para sua vida adulta de fama repentina. Assim como a faixa anterior, “These Walls” também apresenta Bilal e Anna Wise, além do talentoso Thundercat. É uma canção narcótica, onde Lamar fornece insinuações sexuais cimentadas através de versos poéticos. Ele apresenta uma metáfora complexa ao comparar implicitamente paredes literais com as paredes da vagina de uma mulher. O rapper usa essa base para explorar contrastes entre o sexo e a fama. Ele também justapõe o conceito de paredes vaginais com as paredes da prisão do homem que matou um dos seus melhores amigos de infância. De fato, as letras são muito mais profundas e complexas do que possam parecer. O estalar de dedos, o maravilhoso riff de saxofone e o piano, bem como os gemidos femininos e a sensualidade dos vocais, fazem de “These Walls” uma das produções mais fortes do álbum.
A próxima faixa, apenas intitulada “u”, é provavelmente uma das mais obscuras. É a canção oposta da otimista “i” – penúltima faixa do álbum vencedora de 2 Grammy Awards. “u” o encontra gritando em um quarto de hotel, embriagado e considerando o suicídio. É uma música deprimente com letras dolorosas, onde ele está no seu estado mais vulnerável. Uma sensação de desgraça surge aqui. Muitas vezes, ouvimos ele dizer em meio a lágrimas nos olhos: “Amar você é complicado”. O saxofone, a pausa onde o serviço de limpeza bate na porta do hotel, as harmonias de fundo, o tilintar de garrafas de cerveja e os ruídos, complementam os lamentos agudos da música. “Alright” é o acompanhamento perfeito para “u” – o objetivo é tentar se convencer de que, apesar dos problemas pessoais, tudo vai ficar bem. Toda a dor das letras de “u” é deslocada por ele e transformada em uma energia completamente otimista. Acompanhada pelo saxofone, “Alright” é poderosamente festiva e apresenta vocais sem créditos de Pharrell Williams no refrão. Inspirada por uma viagem à África do Sul, local onde testemunhou problemas sociais, Lamar recita letras como: “Minha vida toda eu tive que lutar / Mas se Deus é por nós, então, nós ficaremos bem”.
O interlúdio “For Sale?” apresenta um conceito que envolve tentação. Ele é contado a partir do ponto de vista de “Lucy” tentando seduzi-lo. Lamar faz alusões a Lúcifer enquanto aponta os aspectos negativos de uma carreira no hip hop – ele cospe versos que enumeram as coisas que Lúcifer iria lhe oferecer para que caia na tentação. Sonoramente, “For Sale?” inicia com Lamar tomando fôlego e respirando ofegante, conforme é acompanhado por seus habituais vocalistas: Bilal, Taz Arnold e SZA. Aqui, há sinos eletrônicos, piano, saxofone e uma vibe mais ensolarada. Knxwledge, o beatmaker de Los Angeles, foi o responsável pela produção de “Momma”. É um neo soul influenciado pelo hip hop da Costa Oeste, conduzido por amostras de “Wishful Thinkin’” (Sly and the Family Stone). Novamente, Bilal fornece vocais como contraponto, assim como Lalah Hathaway auxilia com suaves tons de apoio. “Momma” tem uma batida sólida e fala sobre voltar às suas raízes. Lamar se concentra na ideia de voltar para casa, que diz respeito à sua residência em Compton com sua mãe. Ele descreve essa viagem a partir de um olhar de gratidão com o quão longe ele chegou na busca por seu sonho.
Na politicamente carregada “Hoods Politics”, ele justapõe a política do governo federal e da hierarquia social no bairro de Compton. Ele percebe que há muitas coisas para se preocupar, porque pessoas estão morrendo muito jovens devido à violência das gangues. Ele ainda acrescenta que, muitas vezes, o governo faz coisas até piores que as gangues de ruas. O rapper argumenta que grupos políticos afetam os americanos de várias formas, ao contrário das pessoas pobres do seu bairro. Lamar também aproveita para atacar a hipocrisia, tanto da crítica quanto do consumidor. Em “Hood Politics”, você pode ouvir um dedilhar de guitarra e uma simples bateria que, posteriormente, são precedidos por batidas estranhamente saltitantes. Influenciada por amostras de Sufjan Stevens, a batida fornece um cenário perfeito para os versos do Kendrick Lamar. Em “How Much a Dollar Cost”, ele conta uma história que envolve a interação entre ele e um homem sem-teto. Durante o diálogo, o mendigo pede um dólar a ele. Isto nos leva para a questão filosófica do título de quanto realmente custa um dólar. Lamar, pensando que o homem iria gastar com álcool ou qualquer outra droga, não dá o dinheiro. Porém, o homem revela que ele é, na verdade, uma imagem de Deus.
O pedido de um dólar foi um teste para ver se ele realmente se preocupa com os pobres – mas ele se arrepende na esperança de receber o perdão de Deus. É uma metáfora espiritual que se move hipnoticamente através de um encontro com o Criador. Chaves de piano e um pandeiro produzem a abertura. James Fauntleroy, conhecido por seu trabalho como compositor, fornece vibrações de R&B e emerge sob tons angelicais no refrão. Ronald Isley também faz uma excelente aparição no final e contribui com sua influência soul. “Complexion (A Zulu Love)” também possui uma mensagem importante: não devemos julgar uns aos outros pela cor da pele. Lamar faz alusão à escravidão nos Estados Unidos enquanto imagina a si mesmo como um escravo colhendo algodão. Para todas as referências ao passado, ele decide que não tem que deixar a história ditar o futuro. Por isso, tenta educar a sociedade sobre padrões de beleza, mas especificamente o colorismo na comunidade negra. Rhapsody, a rapper convidada, também destaca-se e fala em nome das mulheres. Ela desafia aquelas com baixa autoestima a ter mais fé em sua beleza, cabelos crespos, quadris cheios de curvas e pele mais escura. O segundo single, “The Blacker the Berry”, apresenta vocais de Assassin, artista jamaicano de dancehall.
É uma música racialmente carregada com letras que celebram a herança afro-americana de Kendrick Lamar. Também contém um significado profundo sobre os perigos da hipocrisia e do racismo. “The Blacker the Berry” é mais agressiva e incisiva que o restante do repertório: uma música com ritmo enlouquecer, tambores contundentes e linhas de baixo pesadas. Lamar começou a escrevê-la quando viu a notícia da morte de Trayvon Martin, afro-americano de 17 anos assassinado por um segurança de condomínio. O rapper está realmente irritado e farto com a sociedade. As letras agressivas verbalizam sua raiva reprimida, relativa ao bem-estar da comunidade negra. Em seguida, “You Ain’t Gotta Lie (Momma Said)” praticamente te leva de volta para o hip hop da década de 90. Sob melodias frias e batidas old-school, Lamar começa o primeiro verso a partir do ponto de vista de sua mãe. Ele reconhece que voltar a seus antigos caminhos é muito difícil, uma vez que ele foi recompensado com dinheiro e fama. O rapper transmite a ideia de que no seu regresso a Compton, ele não retrata o comportamento estereotipado dos principais artistas de hip hop. Ele quer permanecer fiel a si mesmo e não corresponder a uma moda passageira apenas para ser aceito. Lições dadas por sua mãe e questões do passado são revistas em sua execução.
Inesperadamente, a nova versão de “i” acabou fazendo sentido dentro do seu contexto. Possui mais de 5 minutos e apresenta uma nova introdução estrelada por um locutor não identificado. Tomando uma abordagem mais otimista, ela é inspirada pelo funk e soul, e mostra um estado mental completamente diferente de “u”. É como um raio de sol no meio da escuridão da outra faixa. A instrumentação ao vivo – com tambores rítmicos e riffs de guitarra – alivia o ambiente. Ao longo de “i”, Lamar afirma que, embora haja caos no mundo e batalhas constantes, “ele ama ele mesmo”. A última faixa, “Mortal Man”, possui mais de 12 minutos de duração. Lamar estabelece e pondera tudo o que ele desenrolou ao longo do álbum. Perspectivas históricas e modernas são examinadas com o máximo de cuidado, assim como sua relação com a fama. Lamar usa essa questão para ramificar temas como liderança, lealdade e incertezas. Ele questiona sua mortalidade perguntando se poderia ser vítima dos mesmos males que derrubaram seus heróis. O rapper se comparada a líderes do movimento negro, como Nelson Mandela, Huey Newton, Martin Luther King Jr., Malcolm X e Michael Jackson. Ele empurra a mensagem de fortalecimento da mesma forma que estes homens fizeram, e quer saber se não será abandonado por seus fãs e seguidores.
Quando a música termina, Lamar apresenta uma entrevista fictícia entre ele e seu maior ídolo, o falecido Tupac Shakur. Essa conversa abrange questões vitais, como a luta pela fama, opressão, frustrações, desigualdade social e o futuro dos negros nos Estados Unidos. Embora seja estranha e emocional, a conversa artisticamente criada entre os dois é um momento gratificante para o hip hop. Fiquei surpreso com o quão natural a conversa soou, uma vez que só se tornou possível porque Kendrick Lamar pegou emprestado uma antiga entrevista de 1994. Sonoramente, “Mortal Man” possui tons jazzísticos, saxofone, piano e um baixo extremamente poderoso. Depois dessa análise faixa-a-faixa, posso concluir que “To Pimp a Butterfly” é um dos álbuns de hip hop mais criativos, inteligentes, desafiantes e memoráveis da história. É uma verdadeira obra-prima! Quase todas as músicas são surpreendentes por conta própria. E juntas elas formam um pacote incrivelmente coeso. Artisticamente, Lamar foi capaz de fazer um álbum socialmente poderoso. Por causa dos comentários sociais, ele serve como uma faísca para o empoderamento negro. “To Pimp a Butterfly” diz ao mundo que os negros estão aqui para ficar e sempre buscarão a igualdade. Kendrick Lamar está pavimentando cada vez mais o seu caminho para se tornar um dos maiores artistas de hip hop de todos os tempos.