Mesmo quando Kanye West está indo por direções desconfortáveis e inacabadas, sua música parece viva.
Kanye West é um gênio e louco na mesma proporção. Ele é uma figura pública desconcertante, mas um artista excepcionalmente talentoso e criativo. Muitos podem tentar se convencer do contrário, mas é inegável que West possui uma genialidade e capacidade artística acima da média. O seu sétimo álbum de estúdio, “The Life of Pablo”, é um brilhante exemplo disso. Ele foi lançado inicialmente como produto exclusivo do serviço de streaming Tidal, após uma série de atrasos em sua finalização. Mais tarde, uma versão atualizada foi lançada em outras plataformas como Spotify e Apple Music. O título é audacioso e faz comparações entre Kanye West e Pablo Picasso. É um álbum de hip hop com letras autoconscientes que giram em torno de fé e tentam descrever as lutas em sua vida. Não é tão coeso quanto seus discos anteriores e as transições são um pouco desordenadas; as letras são profundamente pessoais, mas muitas vezes ficam em segundo plano diante da incrível produção. Mas com exceção desses contratempos, “The Life of Pablo” é magistral e notável. Tudo começa com “Ultralight Beam”, uma maravilhosa balada de hip hop e gospel, com participação de The-Dream, Kelly Price, Kirk Franklin e Chance the Rapper. É possivelmente a melhor canção do álbum, um retrocesso que aponta para a sonoridade dos seus primeiros trabalhos.
Liricamente, fala sobre a sua fé. “Nós não queremos demônios nessa casa, Deus / Nós queremos o Senhor”, The-Dream canta inicialmente. West também se manifesta, dizendo: “Nós estamos em um feixe ultraleve / Isso é um sonho de Deus”. Um esplêndido coral gospel o auxilia e dá à música uma atmosfera angelical. O poderoso refrão e os pesados tambores também dão um ótimo suporte para os vocais. Chance the Rapper é um dos maiores destaques da música, uma vez que fornece um verso fantástico. Ele também aproveitou a oportunidade para enaltecer o seu ídolo: “Eu conheci Kanye West, eu nunca vou falhar”. Em “Father Stretch My Hands Pt. 1”, temos um instrumental intrincado, batidas progressivas e versos adicionais de Kid Cudi. Ela começa de forma explícita com Kanye West mandando uma indireta sugestiva para Amber Rose, sua ex-namorada. O rapper reflete sobre relacionamentos do passado e atuais, uma vez que fala sobre seu casamento com Kim Kardashian nas últimas linhas. Sonoramente, a música utiliza artifícios similares ao do álbum “808’s & Heartbreak” (2008). Sua continuação, intitulada “Pt. 2”, é ainda melhor. Ela apresenta um ritmo diferente, embora não se afaste do caminho desenvolvido pela primeira parte. West fala sobre o relacionamento com o seu pai, a morte de sua mãe e o acidente de carro que sofreu.
Ele revelou que seu pai foi a maior fonte de inspiração para essa música. No dia do lançamento do álbum, ele disse no Twitter: “Eu chorei escrevendo isso. Eu amo meu pai”. “Pt. 2” também apresenta amostras e um verso adicional de “Panda”, atual hit do rapper Desiigner. A batida de “Panda” começa por volta de 39 segundos e é incrivelmente sólida. Curiosamente, o fluxo do Desiigner é surpreendentemente parecido com o do Future. O primeiro single, “Famous”, gerou bastante polêmica assim que foi divulgado. As letras são controversas e fazem referências sugestivas a Taylor Swift. Todos devem se lembrar do episódio que aconteceu no Video Music Awards de 2009, quando West interrompeu o seu discurso. A disputa entre eles se arrasta desde aquele dia, embora ambos não parecem ter qualquer problema um com o outro. Tudo parece ser apenas publicidade, uma vez que em 2015, no palco da mesma premiação, os dois compartilharam elogios e se abraçaram em público. Em sua primeira linha, ele recita: “Acho que Taylor e eu ainda vamos transar / Por quê? Eu fiz esta vadia ficar famosa”. Não é novidade que o rapper costuma ser controverso. Mas em “Famous”, ele está no seu pico mais arrogante. O comentário dirigido à Taylor Swift é bem desnecessário e misógino, mas felizmente isso não mancha a incrível qualidade desta música.
O restante do conteúdo lírico é bastante simples, pois ele apenas cospe comentários sobre ser famoso. O que realmente chama atenção em “Famous” é sua perfeita colagem sonora. Há muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, mas de forma excepcional. Há amostras de “Do What You Gotta Do”, interpretado por Nina Simone, “Bam Bam”, de DJ Sister Nancy, e “Mi Sono Svegliato E… Ho Chiuso Gli Occhi”, da banda Il Rovescio della Medaglia. O gancho principal é fornecido lindamente pela Rihanna, enquanto Swizz Beatz bate em cima das amostras de “Bam Bam”. O sample do dancehall de Sister Nancy é uma das partes mais cativantes, visto que acaba servindo como o acabamento ideal para a música. A produção traz influências old-school do Kanye West, assim como Swizz Beatz colabora com um fluxo clássico. Tudo começa com os vocais onipresentes da Rihanna: “Cara, eu entendo como deve ser / Meio difícil amar uma garota como eu / Eu só queria que você soubesse”. Ela se apresenta sobre um órgão de igreja profano, que dá à música uma sensação gospel formidável. Em seguida, temos uma quebra instrumental, onde West entra em ação. Apesar de suas controvérsias, “Famous” é definitivamente uma música extraordinária. Em “Feedback”, ele ostenta o seu dinheiro, origens e aborda os seus inimigos.
West é alguém que realmente não se importa com as opiniões a seu respeito, poucos artistas falam e se expõem tão abertamente como ele. No segundo verso, ele faz comparações com Pablo Escobar – referência direta com o título do álbum. O instrumental é interessante e exibe um som construído a partir do retorno de um microfone. Isto soa como uma reminiscência narcótica do “Yeezus” (2013). Ademais, a produção possui cordas isoladas, sintetizadores agudos e batidas rítmicas. “Low Lights” possui pouco mais de 2 minutos e é basicamente uma introdução estendida da faixa seguinte. Ela contém apenas palavras faladas, além de um piano e baixo sintetizado. “Highlighs”, com Young Thug comandando a parte melódica, nos remete rapidamente ao “Graduation” (2007) e “808’s & Heartbreak” (2008). Os sintetizadores, os graves profundos e o alto uso de auto-tune, fazem esses álbuns virem à mente. Belas cordas, fortes estalar de dedos, teclas de piano, tambores e um baixo distorcido aparecem aqui. Em um dos versos, West provoca o rapper Ray J: “Eu aposto que eu e Ray J seríamos amigos / Se nós não amassemos a mesma puta”. Ele convidou novamente Desiigner para participar de “Freestyle 4” – outra música que não soaria fora do lugar se estivesse no “Yeezus” (2013). Possui uma estética escura, batidas ameaçadoras e alguns rosnados.
Essa faixa serve como lembrete do lado obscuro do Kanye West. Seu ambiente é aterrorizante e mistura elementos industriais com letras explícitas. Ele fala sobre seus conflitos internos e descreve o quão fora de controle está. A produção do DJ escocês Hudson Mohawke e a amostra de “Humam” acrescentam algumas boas harmonias. Quando chegamos na metade do álbum temos um interlúdio de 44 segundos intitulado “I Love Kanye”. Uma peça acapela onde ele reflete sobre si mesmo; West se mostra autoconsciente ao demonstrar seu amor-próprio e descrever a opinião que o público tem sobre ele. Seu título é tão satírico que, após a última linha, ele próprio solta uma risada. Segundo West, foi por causa de “Waves” que o álbum teve que ser inicialmente adiado. Ela estava fora da tracklist final, mas por insistência de Chance the Rapper, ele resolveu inclui-la de última hora. E Chance the Rapper estava certo, porque é uma canção que realmente mereceu o seu lugar no álbum. “Waves” acena para o R&B, em especial por causa dos vocais do Chris Brown. Seu instrumental é incrivelmente exuberante, glorioso e angelical – a grande atração da música. Enquanto isso, ambos artistas entregam metáforas para descrever suas carreiras. Investindo em um lado mais perturbado, West nos apresenta “FML” – uma abreviação para “Fuck My Life”, ou também “For My Lady”.
Dessa vez, ele tenta refletir sobre o relacionamento com sua esposa Kim Kardashian. West fala sobre as dificuldades que enfrenta para dar o seu melhor para esposa e filhos – ele está realmente vulnerável e autodestrutivo, enquanto é acompanhado por The Weeknd nos vocais. Eles são guiados por uma produção minimalista e um singelo piano. “Real Friends”, com Ty Dolla $ign, foi a primeira música disponível em versão de estúdio e, aparentemente, não sofreu nenhuma alteração significativa. É uma música introspectiva e confessional construída em torno de um piano melancólico e pesadas batidas. Liricamente, é sobre a luta para manter um bom relacionamento com os amigos e familiares. Sonoramente, possui amostras de “Friends” do grupo Whodini, assim como retorna às raízes musicais do próprio Kanye West. “Wolves” foi lançada em 2015 com vocais da Sia, mas a versão final traz a participação de Frank Ocean. Produzida por Cashmere Cat, ela continua explorando os temas religiosos do Kanye West. Aqui, o rapper se equipara com José fazendo comparações de sua esposa e filhos com Maria e Jesus. Entre outros temas, “Wolves” aborda o medo, o amor, o vício e a depressão. Ela é entregue com a ajuda de um baixo sinistro e vocais de apoio de alta-frequência.
“Siiiiiiiiilver Surffffeeeeer Intermission” é um simples interlúdio onde ele apresenta uma conversa por telefone entre os rappers Max B e French Montana. “30 Hours”, por sua vez, é uma música clássica e old-school, referente a longa viagem feita de Chicago para Los Angeles de carro. No início da década de 2000, West se mudou para Los Angeles a fim de gravar o seu primeiro álbum de estúdio. Além do sample de “Answers Me” de Arthur Russell, a canção possui assistência do Drake na escrita e créditos vocais de André 3000. Sua produção é espetacular, uma música ritmada com fortes tambores e fluxo excepcional. Em “No More Parties In LA”, temos dois dos melhores rappers da atualidade juntos: Kanye West e Kendrick Lamar. Dois gênios rimando em linha reta, sem parar, por volta de 6 minutos; uma faixa energética e inspiradora com um jogo de palavras notável. Os rappers, que moram em Los Angeles, trocam histórias entre si sobre a Cidade dos Anjos. O verso do Kendrick Lamar é inteligente e irônico, mas foi West que surpreendentemente roubou os holofotes – ele entregou um dos seus melhores fluxos dos últimos anos. Originalmente lançada na véspera de ano novo, como presente para os fãs, “Facts” o encontra em uma diss track para a Nike. A primeira versão foi produzida por Metro Boomin, enquanto a versão do álbum contém produção de Charlie Heat.
Graças a mudança na batida e instrumental, West encontrou uma plataforma ideal para entregar um fluxo entusiasmado. Embora seja um número interessante, “Fade” não parece adequada para encerrar um álbum como esse. Em cima de batidas retrô, há vocais de Ty Dolla $ign e Post Malone. Não é uma música ruim, mas a inclusão de Ty Dolla $ign foi um pouco desnecessária. Enquanto West não faz rap, Malone e Ty tentam assumir esse desafio. “Fade” é construída em cima de uma linha de baixo vibrante e elementos de house. Além disso, possui amostras de duas canções: “(I Know) I’m Losing You” (Temptations) e “Deep Inside” (Hardrive). Embora ambas músicas sejam de diferentes épocas, se misturaram perfeitamente. As letras são uma tentativa de manter um amor que está desaparecendo. Enquanto o álbum passou por três mudanças no título, “The Life of Pablo” é provavelmente o nome mais adequado. De certo modo, é um resumo sobre a carreira do Kanye West. É raro um artista se reinventar tão constantemente como ele. De fato, “The Life of Pablo” contém um pouco da alma de cada um dos seus álbuns anteriores – desde a intensidade do “Late Registration” (2005) até a experimentação do “Yeezus” (2013). Pode não ser tão coeso como o perfeito “My Beautiful Dark Twisted Fantasy” (2010), mas é extremamente convincente e poderoso!