Um registro importante da performance do Coachella com uma engenharia cuidadosa e uma lucidez impressionante.
Lançado em 17 de abril de 2019 e gravado um ano antes no Coachella Valley Music, “HOMECOMING: THE LIVE ALBUM” apresenta a totalidade da performance de Beyoncé no festival, que desde então tem sido descrito como “histórico” por vários meios de comunicação. Duas faixas bônus – “Before I Let Go” e “I Been On” – seguem a gravação ao vivo, levando a duração do registro para quase 2 horas. A primeira trata-se de uma versão remixada com apoio de poderosos metais e uma energia renovada que exala exuberância e sedução. As trompas proporcionam um cenário inesperado e se misturam lindamente com os vocais. Além de ser apenas uma reviravolta contemporânea dos anos 80, há um significado mais profundo por trás de “Before I Let Go”. As letras são lembretes de que, na comunidade negra, a música atravessa diferentes gerações. Às vezes, a música transcende, tornando-se maior que a soma de suas partes e formando identidades culturais no decorrer do processo. “HOMECOMING” acompanhou um filme sobre a performance que estreou no mesmo dia na Netflix. Alguns álbuns ao vivo podem ficar por conta própria sem recursos visuais, mas “HOMECOMING” não é um deles.
Afinal, é o mais abrangente lançamento ao vivo da Beyoncé até hoje: cerca de 40 músicas que cobrem todas as facetas de sua carreira, desde as Destiny’s Child até o inovador “Lemonade” (2017). No que agora se tornou seu método padrão, “HOMECOMING” foi lançado em uma noite de quinta-feira, no aniversário de um ano do “Beychella”, que incluiu um palco em formato pirâmide com mais de 200 dançarinos e músicos. Parecido com o “Amazing Grace” (1972) de Aretha Franklin, “HOMECOMING” chegou com uma contrapartida visual, outro estilo que se tornou sinônimo de Beyoncé. Entre a edição perfeita, a inclusão cuidadosa das filmagens dos ensaios e o desempenho radical, temos uma infinidade de citações de ícones negros como Nina Simone, W.E.B. Dubois, Alice Walker e Maya Angelou. O álbum se destaca do filme, no entanto, de tal forma que pede para ser examinado como o seu lançamento definitivo. Poucos discos ao vivo são tão poderosos como o “HOMECOMING”. Mas vindo da Beyoncé, isso não deve ser uma surpresa. Uma das coisas mais interessantes é que, mesmo que esteja no auge, ela ainda consegue nos surpreender.
Beyoncé possui material mais do que suficiente para preencher um show de 2 horas, mesmo que faixas como “6 Inch” ou “Beautiful Liar” fiquem de fora. Até mesmo os maiores lançamentos da Bey têm seus momentos duvidosos, como o conceito instável do “I Am … Sasha Fierce” (2008) – mas o “HOMECOMING” é todo perfeito. Por um lado, há a banda escandalosa e uma completa seção de metais. Ouça o refrão de “Freedom” e diga se você não se arrepiar. A mixagem dos instrumentos é consistente, nítido e, acima de tudo, legítimo. “HOMECOMING” é equilibrado com precisão, um álbum ao vivo que não requer reajustes constantes do botão de volume. Palmas, pisões e todas as delicadas notas são apresentados com imensa exatidão. “Formation”, com seu sintetizador saltitante, metais, baixo e chimbais, soa completamente exuberante. As músicas são invertidas e desbotadas uma sobre a outra com uma concisão transcendental. Ouça o turbilhão de “7/11”, que equilibra a Beyoncé com a participação do público, e uma infinidade de faixas de hip hop ao vivo, tudo sem perder uma única nota. A logística do “HOMECOMING” é realmente surpreendente.
Dito isto, posso afirmar que “Don’t Hurt Yourself” é melhor ao vivo. Ouvi-la entrando com a frase “quem diabos você pensa que eu sou?”, vai lhe causar arrepios. Em termos de clímax, “HOMECOMING” alcança o objetivo: “I Care” é o tratamento central, e embora não seja a única balada da tracklist, Beyoncé a entrega com um tensão real. A música precede “Partition”, uma das melodias mais sexy de sua carreira – uma canção que inclusive poderia ter entrado no “Lemonade” (2017). O canto da Beyoncé é gutural, imaculado e clássico, completo com assobios e muitas acrobacias vocais. Em homenagem ao seu estilo vocal em constante evolução, “HOMECOMING” possui uma reunião completa das Destiny’s Child. Você pode ouvir o volume do público aumentar quando a letra de “Say My Name” entra em cena. Sem surpresas, parece que elas nunca se separaram. A reunião pode ser um puro fan service, mas sua dinâmica prova que cada música é imbuída de algum tipo de atualização, até mesmo “Mi Gente”. “HOMECOMING” não é apenas um álbum ao vivo excepcional, é uma declaração para as mulheres negras. É uma apresentação de artistas talentosos, exibidos orgulhosamente nas arquibancadas de uma universidade para o todo mundo ver.
O álbum e o filme são uma oportunidade, uma chance para aqueles ignorados na juventude, convenientemente em um palco ao lado de Beyoncé. Depois dessa apresentação no Coachella, ela redefiniu o conceito sobre festivais de música. Estamos começando entendê-la como uma musicista com alcance, profundidade e poder incomparável: reconhecendo seu talento, sua ambição musical, seu ouvido e olhar para a síntese e o amor permanente pela cultura negra. Com esse lançamento, vislumbramos a artista trabalhando durante seu auge – em voz, fisicalidade e confiança – reimaginando e remixando seu próprio catálogo, descentrando-se para iluminar suas influências e fundamentos. “Beychella” redefiniu o que era possível para um festival de música. No palco, cada pessoa preencheu seu espaço para parecer com as arquibancadas de um estádio de futebol. Preenchendo a estrutura, também há uma orquestra, dançarinos masculinos formando uma linha trêmula como jurados negros de uma fraternidade, dançarinas vestidas como majorettes, cantoras de fundo formando um coro único e dobrando seus corpos na coreografia agressiva. Esse show foi definitivamente uma celebração desafiadora.
O filme da Netflix mostra as performances como Beyoncé queria que vissem, com closes de fantasias deslumbrantes e cores pastéis usadas por corpos de todos os tamanhos. Você vê o suor dos ensaios e o rigoroso regime físico da Beyoncé para voltar à forma física após o nascimento de seus gêmeos. Ela e sua irmã Solange confiam cada vez mais em recursos visuais para pintar uma visão totalmente incorporada e povoada de sua música. Dito isto, “HOMECOMING” parece que nunca foi feito para ser vivido de forma isolada. Ainda assim, pode ser um dos lançamentos mais importantes de sua carreira, justamente por iluminar seu passado e futuro. O vocabulário musical fundamental da Beyoncé é o ritmo e o salto de uma música. Ela é uma classicista que acredita na estrutura de uma canção: refrões, pontes, versos meticulosos, mudanças de tom. Músicas animadas como “Crazy in Love”, “Countdown” e “Love on Top” são alguns dos singles pop mais inventivos e hábeis das últimas décadas. Por quase 110 minutos, ela isola essas canções cheias de adrenalina, amplificando sua energia cinética com arranjos de uma banda marcial. A versão estendida de “Get Me Bodied”, do “B’Day” (2006), é um destaque aqui, assim como “Check on It”.
Ambas canções, mesmo com uma década de idade, soam recém-batizadas no mundo do “HOMECOMING”: o clarim das trombetas, o sopro dos sousafones e o pisar dos dançarinos são polvilhados por toda parte. Os arranjos ampliam a relação que as músicas têm com o trabalho inerentemente percussivo. Ainda assim, Beyoncé é uma cantora em primeiro lugar, e é emocionante ouvir sua voz com tanta clareza. Ela ainda tem a flexibilidade para tocar em faixas superiores, onde canta as primeiras notas de algumas baladas de forma impressionante. Ela rosna durante números do “Lemonade” (2016), como “Sorry” e “Don’t Hurt Yourself”, mas também sussurra e murmura nas primeiras notas de “Partition”. As versões gravadas dos interlúdios e as transições do “HOMECOMING” desenham sua história musical. O filme captura esse fenômeno com um olhar mútuo e aguçado. Beyoncé, notoriamente, foi a primeira mulher negra a se destacar no festival de quase 20 anos. Em um espaço onde ela obviamente não era bem-vinda, ela causou uma impressão duradoura. O Coachella se transformou em um lar. “HOMECOMING” é uma colagem maravilhosa que revela todo talento e genialidade por trás da Beyoncé.