A intensidade das músicas dificulta a digestão de uma só vez. No nível musical, a maior parte funciona, mas falta o elemento surpresa.
Atualmente morando em Los Angeles, Kim Petras é uma cantora alemã que trabalha como artista independente desde 2016. Petras se tornou objeto de cobertura da mídia depois de passar por uma transição de gênero em uma idade muito jovem. Ela nasceu como Tim Petras em 27 de agosto de 1992 em Colônia, Alemanha. Seus pais disseram que desde pequena ela insistia que era uma menina. Eventualmente, os pais procuraram ajuda profissional, mas tiveram dificuldade para encontrar pessoas com conhecimento sobre o assunto. Em novembro de 2008, Petras anunciou em seu blog que tinha finalmente feito a cirurgia de readequação sexual. O que atraiu a atenção da mídia mundial é que ela pode ter sido a pessoa mais jovem do mundo a submeter-se a cirurgia para mudança de sexo. Petras credita a cena pop do final dos anos 90 e a música disco dos anos 80 como a principal base para o seu som. Suas inspirações incluem Britney Spears, Christina Aguilera, Kylie Minogue, Madonna e Spice Girls, além de Boy George e Freddie Mercury. Quando o mundo foi apresentado a Kim Petras pela primeira vez, ela parecia ser a antítese do pop moderno. Abraçando completamente as tendências açucaradas do final dos anos 90 e início da década de 2000, Petras era uma lufada de ar fresco em um clima pop moderno que estava ficando exponencialmente oprimido.
Embora sua presença online, muitas vezes hilária, faça parte do seu apelo, Petras também é amada por sua voz flexível e estranha capacidade de incorporar ansiedade, desejo e euforia em uma música. No início de 2018, a sensação inspirada nos anos 80 de “Heart to Break” – com seu vídeo surreal – foi instantaneamente cativante; apenas o equilíbrio certo entre vulnerabilidade e timidez. Embora raramente seja o caso, quase tudo o que ela publicou desde então tem sido impressionante. No final do ano passado, ela lançou o EP “Turn Off the Light, Vol. 1” (2018), um projeto excêntrico e divertido que continha inegáveis erros. Embora um material temático seja bom, Petras ainda era mais conhecida por seus singles do que qualquer outra coisa. Quero dizer, até semanas atrás, quando ela começou a lançar uma série de músicas novas que formariam um álbum completo. Denominada como seu primeiro corpo de trabalho, “Clarity” foi lançado em 28 de junho de 2019. Todo o ciclo de divulgação coincidiu perfeitamente com o Mês do Orgulho LGBTQ+ – junho se tornou especificamente destinado a celebrar a identidade queer ligada a histórica Rebelião de Stonewall.
A data de lançamento foi apropriada para ela, uma mulher abertamente transgênero que fez sua transição exatamente há uma década. Dez anos depois, agora com 26 anos, a cultura mainstream está finalmente começando a entender e reconhecer a experiência de pessoas transsexuais como Kim Petras. Sob essa luz, sua ascensão parece uma coisa extremamente positiva que ajudará mais pessoas a se educarem sobre questões de identidade de gênero, transição de gênero e sexualidade. Outra coisa que chama atenção é sua estreita relação de trabalho com o produtor Dr. Luke, que foi publicamente acusado de agressão e abuso pela Kesha. Petras afirmou que ela só teve um relacionamento positivo com ele, permitindo “múltiplas perspectivas” quando se trata de relações de trabalho. “Clarity” prova o quão poderosa e versátil ela pode ser no estúdio, exercitando suas proezas habilmente sobre qualquer batida ou acorde. Finalmente, sucumbindo às tendências modernas, que refletem seus próprios hábitos de escuta mais do que tudo, o LP tem seu quinhão de faixas que abraçam a estética pop-trap. Geralmente, uma mudança tão dramática parece forçada, mas, neste caso, o contexto é fundamental.
Antes de gravar os singles que inevitavelmente formariam o repertório, um rompimento devastador lançou uma chave nas motivações de Kim Petras. Ela queria criar músicas que expressassem sua tristeza – e, ao fazer isso, “Clarity” documenta os estágios finais do fim de um relacionamento – bem como o processo de cura e crescimento. Enquanto seus primeiro singles, como “I Don’t Want It at All” e “Heart to Break”, eram dance-pop superdimensionados, esse álbum é mais eclético e se estende por outros subgêneros do pop. Petras passa da deprimente “Personal Hell” para o trap downtempo de “All I Do Is Cry” e “Broken”, até as vibrações de disco e luxúria de “Sweet Spot” e “Do Me”. Depois, há “Got My Number”, uma espécie de chamada reversa que se move para um território sintético e paquerador. Muitas faixas são fortalecedoras para os fãs, e principalmente para a comunidade LGBTQ+. “Eu sou a vadia com o molho, aparentemente”, ela canta maliciosamente na faixa-título. Uma frase que permanecerá em sua mente mesmo depois de sua conclusão – o refrão é um excelente exemplo da magia de sua voz. É um breve momento introdutório que explora seu fluxo de consciência e a ouve encontrando sua confiança depois de se sentir frustrada.
Enquanto o lançamento dos singles deixou os fãs curiosos sobre como exatamente seria o álbum, ele acabou sendo surpreendentemente coeso. A maioria das faixas possui padrões de bateria discretos e uma abordagem diferente do pop que seus singles anteriores apresentaram. “Clarity” representa uma Kim Petras radicalmente diferente daquela que os fãs foram originalmente introduzidos. Isso não quer dizer, no entanto, que o projeto represente uma mudança em seu estilo. Com batidas temperamentais e lirismo honesto, “Icy” encontra uma maneira de segurar sua entrega atrevida. “Tão burra, eu acreditei que você realmente gostava de mim / Por sua causa, agora meu coração está tão gelado”, ela canta. No entanto, o momento mais vulnerável provavelmente vem do pop-trap “All I Do Is Cry”. Metade do registro tem uma tristeza palpável e uma raiva ardente. Considerando sua batida e melodia, “All I Do Is Cry” poderia ser facilmente reproduzida como uma resposta a “Lucid Dreams”, de Juice WRLD. Ambas faixas encontram os respectivos artistas em um quantidade inacreditável de dor e descrença. Porém, enquanto “Lucid Dreams” tem um entorpecimento em suas emoções avassaladoras, Kim Petras as abraça.
Embora essa direção possa alienar os fãs acostumados ao seu antigo som, o repertório tem seu quinhão de faixas que abraçam suas raízes. “Sweet Spot” e “Personal Hell” são bons exemplos; a primeira adota uma estética europop e disco influenciada por Kylie Minogue, ao passo que a última soa como a mais agradável mistura entre “Tainted Love” (Soft Cell) e “Radar” (Britney Spears). “Sweet Spot” é particularmente uma das faixas mais abertamente sexuais que ela lançou até o momento. “Broken”, o primeiro single, a encontra narrando a experiência de ser traída. Uma confecção farpada que a vê desejando redistribuição cósmica de um desgosto em cima de uma produção simplista. “Eu costumava fazer tudo por você”, ela murmura antes de chegar ao refrão. “Você fez doer demais / Espero que tenha conseguido, espero que você tenha conseguido / Tudo o que você queria / Rezo a Deus, rezo a Deus / Que ela te deixe quebrado, com o coração partido”. Embora tenha o conteúdo mais pesado do ponto de vista lírico, há um excelente equilíbrio entre luz e escuridão no decorrer do álbum. A empolgante “Do Me” pisa corajosamente em um território que ela nunca viu antes. Em vez de enterrar a mensagem em metáforas favoráveis, ela orgulhosamente afirma o que quer.
Lenta e inesquecível, “Another One” descreve a insegurança de querer confiar na pessoa com quem você está, mesmo que ela provavelmente não seja merecedora. “Blow It All” é a irmã mais velha e rica de “Faded”. Ela destaca sua clara mudança de inspiração, desde o brilhante bubblegum pop até as influências de hip hop e trap. “Meet the Parents”, por sua vez, é um hino adocicado que dita as regras de um relacionamento casual. “Eu poderia levá-lo para Paris”, ela canta. “Eu poderia levá-lo para Nova York, mas você nunca conhecerá meus pais”. Em comparação, “Shinin” parece capturar sua ascensão. Há uma reviravolta inspiradora nos versos, e claro, um suave “woo-ah” para encerrar as coisas. “Shinin” combina muito bem com a faixa-título; um número cristalino que reconhece seu valor. Provando consistentemente que ela nunca vai se encaixar em um gênero, “Clarity” é um LP transitório que apresenta um lado mais complicado, ainda que compulsivamente cativante, de Kim Petras. Ao contrário de colaboradores como Charli XCX e SOPHIE, ela não quer produzir um pop futurista; em vez disso, ela o pega do jeito que está e o torna em algo mais ousado e agressivo. Como uma coleção, destaca os altos e baixos de sua jornada enquanto mantém o glamour que os fãs tanto amam.