A produção do “YHLQMDLG” é quase perfeita; o gênero que uma vez foi relegado a festas privadas no Porto Rico, agora é ovacionado pelo público mainstream.
A música urbana na América Latina chegou ao mainstream, assim como o rap na América do Norte nos anos 90. No caso do rap, o funk era a principal veia e, com o reggaeton sendo próximo do dancehall, a história é semelhante. Depois que “Gasolina” atingiu grande escala mundial em 2005, a conexão entre a música urbana americana e latina cresceu. Avance para 2020 e parece que todos artistas americanos estão tentando se conectar com os mais badalados artistas de reggaeton para subir nos charts musicais. Benito Antonio Martínez Ocasio, mais conhecido como Bad Bunny, entrou na cena em 2018, quando lançou “Amorfoda” no Dia dos Namorados. Desde então, El Conejo Malo trabalhou com grandes nomes como J Balvin, Daddy Yankee, Drake e Cardi B. Ele construiu, por falta de palavras melhores, uma carreira consistente em apenas dois anos. Além de indicações ao Grammy, ele provou ser uma força mundial mesmo sem nunca cantar em inglês. Com unhas feitas, roupas excêntricas e vários piercings, ele abraça um estilo que o reggaeton geralmente repudia. Sua aparência está longe de ser uma fachada, dado seu ativismo como artista. Anteontem, ele se apresentou no “The Tonight Show” vestindo um blazer, uma saia e uma camisa que dizia: “Eles mataram Alexa, não um homem de saia”. A mensagem refere-se à cobertura transfóbica da mídia porto-riquenha sobre o assassinato de Neulisa Alexa Luciano Ruiz, uma mulher negra transsexual que foi referida como “um homem de saia”.
Os telespectadores dos Estados Unidos ficaram intrigados – afinal, a grande mídia internacional mal havia relatado o assassinato brutal. Mas para a audiência doméstica, a mensagem era clara: ele estava corrigindo a má interpretação de Alexa por parte da mídia porto-riquenha. Fazendo ondas em um gênero tradicionalmente homofóbico, misógino e machista, faz sentido que o seu novo álbum, “YHLQMDLG” (“Yo Hago Lo Que Me Da La Gana”), possua esse título. Agora, mais confortável como artista, Bad Bunny experimenta mais do que nunca. Colaborando com várias pessoas, de gigantes da indústria a estrelas em ascensão, ele se adapta a diferentes sons, mas mantendo-se fiel a si mesmo. Sejam suas roupas, ações ou abordagem musical, ele está disposto a desafiar as convenções tradicionalmente rígidas do gênero. Dito isto, “YHLQMDLG” é uma exploração imprevisível proporcionada por uma combinação de trap, rap e reggaeton. Mais uma vez, ele quebrou o paradigma – porém, indo contra o padrão inovador do “X100PRE” (2018). Em seu extenso repertório de 20 faixas, ele inverte o curso e quebra o molde por dentro. É claro que existem alguns momentos que se arrastam, mas, apesar de tudo, o álbum se beneficia da forte produção. Sua abordagem musical também é ousada – ele rompe e transforma os gêneros que consome. Certamente, sua atitude no “The Tonight Show” é o exemplo mais recente do compromisso de um artista com as causas políticas e sociais de Porto Rico.
Anteriormente, ele se manifestou contra projetos do governo que reduziam os direitos da comunidade LGBTQ+ e usou as redes sociais para expressar sua opinião sobre o sistema público de ensino. Como uma celebridade milenar, sua presença nas redes sociais foi crucial para promover essa personalidade socialmente consciente. Assim, sua imagem se tornou o símbolo de uma geração jovem lutando contra paradigmas estagnados. Seu álbum de estreia já havia evidenciado que ele literalmente pode fazer o que quiser. Sua fórmula extravagante lhe concede sucesso. Mas se “X100PRE” (2018) lembra conceitualmente um sentimentalismo porto-riquenho do início dos anos 2000, “YHLQMDLG” tenta um puro retorno ao reggaeton. Menos arredondado, ele pega todas as convenções clássicas que pode, a fim de explorar suas qualidades mais dançantes. Nas faixas de reggaeton, ele revisita o som mais simples e rudimentar do gênero. O perreo, a dança parecida com o twerk associada ao reggaeton, ocupa o centro do palco. Bad Bunny alcançou essa energia com Marco “Tainy” Masís, que produziu a maior parte do disco. De todos os artistas latinos que ganharam destaque no final da década passada, sua ascensão foi certamente a mais rápida. Em 2016, ele era um ensacador de supermercado que postou uma música no SoundCloud e chamou atenção do selo Hear This Music.
Dois anos depois, ele se tornou independente, liderou o ranking da Billboard Hot 100 com “I Like It” e lançou seu álbum de estreia. Enquanto seus colegas estavam flexionando sua riqueza, ele falava de seus sentimentos e se destacava como o garoto triste do reggaeton. Todavia, Bad Bunny segue por uma rota diferente: ele mantém o respeito por sua ex-namorada. De fato, ele parece ser totalmente respeitoso com a figura feminina. Ao ouvir os primeiros segundos da peculiar “Si Veo a Tu Mamá”, você já percebe que ele está desafiando sua própria abordagem. Com letras sinceras, ele apresenta seu desgosto com um senso de vulnerabilidade incomum para o reggaeton. O conteúdo é acompanhado por uma amostra remixada da clássica “The Girl from Ipanema”, além de melodias que lembram os anos 60 e batidas de trap latino. Aqui, Benito mostra um alcance vocal expressivo que ele nunca havia compartilhado antes. A segunda faixa, “La Difícil”, fornece um tema parecido, mas consegue retratar seus sentimentos sem encharcá-los de sexismo – é a primeira faixa de reggaeton do álbum. Em seguida, “Pero Ya No” mostra mais de suas costeletas vocais, enquanto “La Santa”, com Daddy Yankee, relembra seu interesse amoroso sobre a natureza precária do primeiro encontro. “Yo Perreo Sola” e “Bichiyal” são odes para as mulheres, mas em um sentido menos romântico.
A primeira, uma das melhores faixas do repertório, é um hino feminista que celebra a independência das mulheres. Ele aponta que elas não precisam de um parceiro para se sentir sexy e se divertir. Geralmente, o reggaeton é conhecido por suas mensagens machistas, onde mulheres podem ser degradadas. Felizmente, aqui é justamente o contrário. O refrão apresenta vocais de Génesis Rios, profissionalmente conhecida por Nesi. A única falha na ignição de “Yo Perreo Sola” é justamente porque Nesi não é devidamente creditada. Consequentemente, Bad Bunny perpetua a oclusão histórica de mulheres contribuintes de reggaeton. A energia do perreo continua na irresistível “Bichiyal”, com Yaviah, antes do álbum fazer um desvio no seu trecho urbano mais longo. Seus vocais abafados contrastam com a melodia espaçosa de “Soliá” – construída por um vocoder, a música flutua sob exuberantes nuvens de sintetizador. “Ignorantes” toca nas raízes dancehall de Sech, destacando os vocais sonolentos do artista panamenho sobre harmonias em camadas e batidas tropicais. O reggaeton no Panamá, por meio de pioneiros afro-latino-americanos como El General e Nando Boom, é frequentemente esquecido. Mas Bad Bunny compartilha os holofotes com Sech e coloca o país de volta no mapa. Outra faixa cativante é “A Tu Merced”, graças ao sabor de reggae e a nostalgia de suas chicotadas.
Mas a melhor faixa é certamente “Safaera”, uma colaboração com Jowell & Randy e Ñengo Flow. Essa música lembra uma vasta gama de ritmos associados ao reggaeton clássico e underground. Uma canção atrevida e atraente que transmite magistralmente o melhor do perreo. Suas quebras constantes e transições desajeitadas exemplificam a estrutura orientadora do álbum. “Safaera” basicamente percorre todas as fases do reggaeton, a certa altura experimentando a excelente “Get Ur Freak On”, da Missy Elliott, e prestando uma homenagem sutil a icônica “El Tiburón” de Alexis Y Fido. Em “25/8”, ele retorna à sua marca latina de trap, com um som semelhante ao do Migos e Travi$ Scott, ao passo que “Está Cabrón Ser Yo” apresenta o fluxo fortemente auto-tunado de Anuel AA. A batida de “P FKN R” faz um desserviço à força vocal do Bad Bunny, mantendo a batida da trap tão suave que a ferocidade transmitida em seus versos fica aquém do esperado. Em vez disso, Arcángel e Kendo Kaponi brilham com uma ameaçadora melodia de baixo que destaca suas elucubrações na precária vida cotidiana de Porto Rico. O trap da flauta de “Hablamos Mañana”, por sua vez, com o rapper chileno Pablo Chill-E e o argentino Duki, termina com uma nota inesperada. Depois que os caras se gabam de viver uma vida agitada, uma explosão de guitarra apoia a saída assustadora de Duki.
Para finalizar o álbum, a transição de “Hablamos Mañana” para “<3” revela um outro estilo de palavras faladas, onde Bad Bunny reflete sobre suas realizações como artista. Apoiada por cordas, a vulnerável “<3” mantém uma sensação harmoniosa com a produção lo-fi. Mesmo em suas reflexões, no entanto, ele se recusa a ser idolatrado. E mesmo que tenha conseguido o que muitos artistas ainda não realizaram, ele permanece fiel a si mesmo. Ademais, ele choca o ouvinte com uma confissão inesperada: espera se aposentar precocemente. Enquanto 20 faixas parecem cansativas, Bad Bunny consegue prender nossa atenção com facilidade. Com isso em mente, ressalto que ele fez um álbum incrivelmente divertido e refrescante. O cara realmente faz o que quer; ele desafia a norma social do que significa ser homem e faz isso enquanto cria músicas para as pessoas dançarem. “YHLQMDLG” cimenta seu lugar na vanguarda da música urbana. Assim como seu primeiro material, ele estabelece um desafio para seus colegas de profissão. Enquanto a infraestrutura do “YHLQMDLG” repousa sobre os pilares que carregam o trap e o reggaeton modernos, ele cria uma fusão perfeita de sons populares e influências formativas. E embora seja definitivamente um reflexo do seu crescimento pessoal e musical, o conteúdo ainda tem um comportamento familiar e descontraído. É uma obra-prima perfeitamente versátil para desfrutar em qualquer ocasião.