Ironicamente, a falta de texto torna “Recital Instrumental” tão conceitualmente rico quanto qualquer coisa que o BaianaSystem já fez.
Nessa sexta-feira, BaianaSystem lançou o segundo ato que vai integrar o álbum “OXEAXEEXU”. O ATO 2 se chama “Recital Instrumental” e chegou acompanhado dos vídeos de “Guerra Batalha”, “Barbatana” e “Criado Mudou”. De acordo com a assessoria de imprensa do grupo, “Recital Instrumental” é um ato que “mergulha no universo sensorial da música e suas muitas camadas, priorizando o instrumental como parte fundamental e necessária para a música do BaianaSystem”. O EP chega após o “ATO 1: Navio Pirata” (2021), lançado na sexta-feira de Carnaval. Os vídeos de “Barbatana” e “Criado Mudou” possuem um teor celebratório; o primeiro, trazendo imagens do bloco de carnaval do BaianaSystem, e o segundo uma filmagem de uma aula gravada no Quênia, em 1973. “Guerra Batalha” aborda o cotidiano de trabalho da população pertencente às classes menos favorecidas da sociedade, fechando com imagens impactantes da situação de aglomeração que os trabalhadores enfrentam no transporte público. Das cinco composições do álbum, somente duas são temas realmente instrumentais, sem letras. No entanto, mesmo nas faixas com letras, o EP põe as vozes a serviço do arsenal sonoro construído com a mistura de cordas, metais, percussão e sintetizadores.
A palavra cantada, aqui, é projetada como mais um instrumento narrativo, captando os sons que vêm de várias direções. De fato, esse ato mostra a importância do instrumental para o grupo – as camadas e texturas destacam mais uma vez o cuidado dos músicos. O esboço, na maioria das vezes, é assustador para qualquer banda. Você pode passar a vida inteira em um rascunho, pensando indefinidamente, nunca chegando a um produto acabado. Parece um lugar especialmente estranho para eles, um grupo baiano que faz discos rigorosamente e supremamente envernizados há mais de uma década. Contudo, o trabalho de Russo Passapusso com o BaianaSystem sempre foi diferente, livre e improvisado. E “Recital Instrumental” vive quase exclusivamente na fase de projeção, e a própria música parece saborear a experiência de sua criação. É principalmente um disco de rock, além de um coquetel inebriante de madeiras, metais silenciosos e sintetizadores hipertrofiados. Em “Guerra Batalha”, com a mezzo-soprano Liz Reis, há uma narrativa sobre batalhas diárias dos trabalhadores ao longo dos anos para conseguir condições de sobrevivência. Em meio a pandemia, o vídeo mostra a guerra enfrentada no transporte lotado, sem qualquer distanciamento.
Integrante da Orquestra Neojibá desde os 15 anos de idade, Liz é cantora lírica e faz parte da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Escrita por Passapusso, “Guerra Batalha” também foi gravada com sopros orquestrados pelo maestro Ubiratan Marques. “Tubarão”, por sua vez, é baseada na mistura do baixo de Seko Bass com a guitarra crocante de Junix 11, a flauta e o saxofone de Joander Cruz e as percussões secas de Ícaro Silva e Japa System. Introduzida pelo toque do piano de Ubiratan Marques, a atmosfera é posteriormente incrementada com camadas de sintetizadores e outros efeitos sonoros. É uma alegria testemunhar alguém como Passapusso, normalmente determinado e direto com a linguagem, se soltar, e essa alegria é transportada para a trêmula “Barbatana”. É uma peça instrumental formulada pela mistura estonteante de bateria, sintetizadores, percussão, guitarra e teclado. Isso não quer dizer que as palavras da banda não tenham sentido, apenas que sua ênfase – no momento – está mais no som do que no sentido. Em “Criado Mudou”, Passapusso aborda mais algumas histórias. “Ouça o motivo de minha paz”, ele diz, sua voz inquisitiva, como se estivesse procurando por suas palavras no ar, “Inevitável pra você rapaz”.
Ele continua, parecendo mais seguro, enquanto explora uma atmosfera sombria reforçada pela bela interação de piano e bateria. Enquanto a canção tenta seu caminho, o teclado navega pelo espaço como alguém perdido em uma floresta. Claro, como qualquer álbum, existem momentos que provavelmente não vão te agradar. O instrumental barulhento e dinâmico de “Rádio África” é um pouco estonteante, e não de uma forma particularmente interessante. Ultrapassando a marca de 3 minutos, é a faixa mais longa do EP. Mas na maioria das vezes, a qualidade inerentemente inacabada do EP faz com que tudo pareça orgânico e profundamente humano. Se o “ATO 2” é sobre a sensualidade de vagar pelo processo artístico, então “Guerra Batalha” é o corte mais realizado do álbum. Aqui, instrumentos da família dos metais brilham como raios de sol, enquanto a ênfase é colocada nos arranjos vocais da Liz Reis. Ironicamente, a falta de texto torna “Recital Instrumental” tão conceitualmente rico quanto qualquer coisa que o BaianaSystem já fez. No geral, este ato se apresenta em cinco peças que funcionam como uma transição para um novo lugar. O grupo mostra que pode haver esperança, um sentimento que provavelmente será renovado no “ATO 3: América do Sol”.