É gratificante poder ouvir a Gal Costa cantar alguns dos seus maiores clássicos ao lado de outros artistas tão talentosos.
Aos 14 anos, Gal Costa ouviu “Chega de Saudade” do João Gilberto pela primeira vez no rádio e começou a se interessar pela bossa nova. Foi a partir daquele momento que surgiu uma carreira bem-sucedida de cinco décadas. Aos 75 anos, ela é uma verdadeira veterana e lenda da MPB. É particularmente animador ver que ela ainda está trabalhando tão ativa e criativamente nesta idade. Seu novo álbum de estúdio, “Nenhuma Dor”, organiza os dez singles que ela lançou nas plataformas digitais desde novembro de 2020. Aqui, Gal Costa faz duetos com Rodrigo Amarante, Seu Jorge, Silva, Criolo, Rubel, Tim Bernardes e Zé Ibarra – além de Zeca Veloso, filho de Caetano Veloso –, com o português António Zambujo e com o uruguaio Jorge Drexler. Seus vocais estão incrivelmente relaxantes e comoventes, ao passo que os instrumentais lhes complementam de forma brilhante, assim como cada vocalista convidado. “Nenhuma Dor” não tem muitos adornos, e acho que é disso que se trata este álbum. Com isso em mente, é uma espécie de LP de aniversário de sua carreira artística, que por um lado celebra o seu aniversário pessoal, por outro comemora os 55 anos que sua carreira já percorre. Consequentemente, o repertório é particularmente nostálgico e entrelaçado com várias memórias.
Todas as faixas são gravações reinterpretadas de canções antigas, cada uma criada em colaboração com uma figura conhecida da música popular brasileira. É certo dizer que os apreciadores mais assíduos da MPB e bossa nova são familiarizados com vozes masculinas como Seu Jorge, Rodrigo Amarante ou Zeca Veloso. E o que é muito mais importante de qualquer maneira é o que este álbum cria com tudo isso. Porque quando tantas pessoas, às vezes bastante conhecidas, se juntam para interpretar canções de mais de meio século, então a história da própria MPB é inevitavelmente revisitada. Claro, Gal Costa nem sempre foi uma figura formadora e não é o começo e o fim de um cosmo gigantesco do movimento, mas ela é uma cronista muito talentosa. As vibrações psicodélicas de suas primeiras canções foram definitivamente apagadas, mas em termos de composição, boa parte do repertório ainda se sustenta adequadamente. E como intérprete, Gal ainda é surpreendentemente indiferente e gentil – mesmo aos 75 anos. Boa parte do som é típico da MPB, mas mais no sentido do classicismo moderno do que uma atitude vintage real.
Pessoalmente, é claro, eu estava mais curioso sobre a reformulação de “Baby”, a única peça do álbum auto-intitulado de 1969. Mas o momento mais emocionante aqui, na verdade, aparece no final, quando ela encerra o disco com a faixa-título “Nenhuma Dor”. Essa música foi apresentada originalmente no primeiro álbum da Gal Costa que ela gravou com Caetano Veloso. O filho Zeca Veloso assume agora o papel do longa-metragem, fechando um círculo com mais de meio século. A essa altura, isso nos faz sentir uma espécie de emoção e nostalgia diferentes pela carreira dessa mulher e pela própria música popular brasileira. Onde eu acho isso principalmente misterioso, definitivamente fala sobre o que este álbum comunica. É meio estranho ela lançar um álbum com o título “nenhuma dor” bem no meio de uma pandemia que já matou milhares de pessoas no mundo. Mas o repertório é marcado por algumas canções gravadas durante a ditadura militar. Ou seja, o título otimista faz algum sentido. Em meio a tanta tristeza, “Nenhuma Dor” pode ser considerado um refúgio para ela e seus fãs. No entanto, a falta de inovação não é uma surpresa, bem como não é inesperado a nova roupagem dada às músicas.
É compreensível a escolha de nomes como Rubel, Silva e Tim Bernardes, artistas na casa dos 30 anos que servem de contraponto tanto à sua experiência quanto à performance de outros convidados mais consagrados, como Seu Jorge, Rodrigo Amarante e Jorge Drexler. Felizmente, Gal Costa consegue tornar até mesmo duetos desinteressantes em uma oportunidade para ouvirmos novamente sua bela voz. Há uma beleza real nas novas roupagens para quem está disposto a olhar para o passado da cantora. Seu canto definitivamente já ultrapassou gerações. O álbum abre com “Avarandado”, com Rodrigo Amarante, integrante do Los Hermanos. Escrita por Caetano Veloso, a canção fez parte do seu primeiro álbum de estúdio, “Domingo” (1967). Amarante contribuiu com os vocais, além do baixo, bandolim, piano, percussão, cuíca e arranjo de cordas. A nova versão é mais descontraída e saltitante, especialmente por causa do gingado e canto mais maduro da Gal Costa. “Só Louco”, com o capixaba Silva – um dos mais conhecidos representantes da nova MPB -, mantém o clima suave da primeira faixa. Escrita por Dorival Caymmi, a canção foi originalmente lançada no álbum “Gal Canta Caymmi” (1976).
A atmosfera relaxante e classuda é mantida principalmente através da percussão e das cordas brilhantes. Composta por Caetano Veloso e Milton Nascimento, “Paula e Bebeto” conta com a participação do Criolo. A principal mensagem da música é mostrar que “qualquer maneira de amor vale a pena”, independentemente do contexto. O instrumental mais moderno contrasta perfeitamente com o vocal extasiado da Gal. A música tenta emular a peça original de 1978 com a agitação da guitarra acústica e a consistência do Criolo. Em seguida, a melancólica e dramática “Pois É”, de Tom Jobim e Chico Buarque, apresenta vocais do cantor português António Zambujo. Originalmente lançada no álbum “Água Viva” (1978), a curta “Pois É” marca presença com sons de violino e viola, além de uma beleza melódica impressionante. Zambujo possui uma grande admiração pela música brasileira, tendo em vista que já dedicou um álbum inteiro ao Chico Buarque. “Meu Bem, Meu Mal”, por sua vez, é uma de suas canções mais conhecidas, tendo em vista que até se tornou tema de novela. As letras românticas e o tom sedutor da Gal, te encantam com grande facilidade.
Essa clássica canção fez parte do álbum “Fantasia” (1981), mas agora ganhou uma versão apaixonante no piano com participação de Zé Ibarra. Gal sempre mostrou muito afeto por Luiz Melodia e, consequentemente, não poderia faltar uma de suas composições aqui. “Juventude Transviada”, gravada para o álbum “Gal Tropical” (1979), agora tem a participação de Seu Jorge. Surpreendentemente, essa nova releitura consegue ser tão memorável quanto a original. O tambor inicial abre as portas para o vocal extremamente grave do Seu Jorge, que logo é acompanhado pelo violão e a voz expressiva da Gal Costa. “Baby”, canção marcante de sua fase tropicalista, agora possui cordas e a contribuição vocal de Tim Bernardes, outro rosto conhecido da cena contemporânea da MPB. Com performance e agudos inesperados, a música cresce significativamente a cada segundo que passa. Mesmo com 75 anos de idade, Gal ainda prova que é uma das maiores vozes da história do país. “Coração Vagabundo”, outra canção de sua era tropicalista, é interpretada ao lado de outra voz da nova MPB, o cantor carioca Rubel. Também lançada originalmente em seu primeiro álbum de estúdio, “Coração Vagabundo” apresenta ambos no centro do palco com apoio do singelo violão e alguns arranjos de cordas.
“Negro Amor”, versão do Caetano Veloso de uma canção do Bob Dylan (“It’s All Over Now, Baby Clue”), que Gal gravou para o álbum “Caras & Bocas” (1977), conta com a participação de um artista estrangeiro, Jorge Drexler – uruguaio de 56 anos mais conhecido pela canção “Al Otro lado Del Río”, a primeira música em espanhol a vencer o Oscar de “Melhor Canção Original”. “Negro Amor” é certamente uma das minhas músicas favoritas da Gal Costa, mas a nova versão não possui grandes novidades, além da contribuição gringa do Jorge Drexler. Acho que já deu para perceber que esse álbum é quase uma homenagem para o Caetano Veloso. Portanto, a última faixa, “Nenhuma Dor”, escrita por ele e Torquato Neto e gravada para o álbum “Domingo” (1967), conta com a participação do seu filho nos vocais, Zeca Veloso. É uma música tranquila e homogênea que encerra o álbum docemente. Desde a reformulação de sua carreira em 2011 com o álbum “Recanto”, Gal Costa rejuvenesce a cada novo LP. “Nenhuma Dor” possui faixas sólidas que juntas formam um pacote completo. Sua consistência e a simplicidade garantem uma boa experiência auditiva. É gratificante poder ouvi-la cantar alguns dos seus maiores clássicos ao lado de outros artistas tão talentosos.