Revisitando suas experiências mais pessoais, Rico Dalasam reflete sobre acontecimentos de sua vida de forma inesperadamente confessional.
Após a repercussão negativa sobre a disputa judicial pelos direitos autorais da canção “Todo Dia”, colaboração com Pabllo Vittar, Rico Dalasam resolveu produzir seu segundo álbum de estúdio, “Dolores Dala Guardião do Alívio”. O projeto conta com 11 músicas e participação de vários artistas, como Mahal Pita (BaianaSystem), Dinho Souza, Rafa Dias, Pedrowl, Moisés Guimarães, Neto Galdino e Wallace Chibatinha (ÀTTØØXXÁ). É a continuação da narrativa iniciada no EP de mesmo nome, lançado no ano passado. Além do R&B, pop, hip hop e rap, ele trabalha com uma sonoridade que vai do funk ao pagode. Os arranjos são um charme à parte, tendo em vista que fornece uma premissa interessante para a melancolia das letras. Revisitando suas experiências e abordando sua negritude, racismo, silenciamento, relações interraciais, desigualdade social e luta da comunidade LGBTQ+, Dalasam menciona acontecimentos ocorridos durante sua vida de forma inesperadamente confessional – há redenção, tensão, dores e decepções. “Dolores Dala Guardião do Alívio” inicia debates e fornece alívio em meio a tempos tão difíceis. Como ele mesmo disse, o álbum nasceu porque “eu não falaria de alívio se não tivesse doído tanto”. O álbum surgiu após diversos comentários negativos sobre ele e um possível cancelamento virtual.
Mais amadurecido, ele, assim como na própria capa, aparece com o coração aliviado e de braços abertos. Infelizmente, “Dolores Dala Guardião do Alívio” é formado apenas por quatro faixas inéditas, uma vez que metade do repertório já havia sido apresentado no EP homônimo. Depois de passar um tempo longe dos holofotes, após a briga judicial com Pabllo Vittar, Dalasam fornece novas visões acerca de sua vida. Aqui, ele parece mais livre e vulnerável do que de costume. É um álbum breve, mas igualmente intenso. É sempre bom ver um artista se reencontrar artisticamente – e particularmente de forma tão autêntica. O lirismo é romântico, o fluxo bem cadenciado e as melodias surpreendentemente amistosas. Mas além do hip hop, Dalasam foi ainda mais influenciado pelo R&B contemporâneo. Isso gerou uma sintonia ainda mais agradável para o álbum. No texto que apresenta o LP, ele usa as seguintes palavras: “Não estou debatendo o corpo político ou a vida do negro do modo social, mas discutindo um lugar lá dentro da gente que é pouco elaborado no imaginário coletivo da sociedade”. Isso resume sua intenção ao lançar tal projeto. Tudo é focado em suas próprias experiências como um rapper negro e gay que recentemente passou por relacionamentos tão instáveis e conflituosos.
Dito isto, é evidente que Rico Dalasam passou por um período de amadurecimento e reinvenção desde que lançou o seu primeiro EP em 2015. Agora, ele prefere explorar algo mais experimental misturando diferentes gêneros musicais que, agora, fazem parte do seu espectro sonoro. “Dolores Dala Guardião do Alívio” encerra, de fato, a narrativa iniciada no EP homônimo – tudo isso em apenas 26 minutos. Em uma entrevista em julho de 2020, Emicida disse que Rico Dalasam é “um dos melhores letristas que nós temos hoje”. E realmente é verdade. Como um álbum conceitual, “Dolores Dala Guardião do Alívio” possui uma estrutura narrativa muito bem amarrada. Tudo é coeso. “DDGA” é um prelúdio em spoken word que abre o álbum com ajuda do acordeão e piano. “Não falaria de alívio se não tivesse doído tanto”, é certamente a frase de destaque. “Expresso Suldamericah” mistura questões coloniais de uma pessoa situada na América Latina com os seus dilemas pessoais. Dalasam continua expressando seus desencantos e suas visões do mundo latino, e tudo o que isso significa para ele. Dessa vez, ao invés de um discurso otimista, nos deparamos com o manifesto de um homem confuso e angustiado. A esquete “Não é Comigo” segue pelo mesmo caminho da música anterior abordando um relacionamento interracial.
O fato de não haver instrumental, injeta uma tensão à faixa, conforme ele também comenta sobre o boicote que artistas negros e homossexuais sofrem na indústria da música. Em “Última Vez”, ele amarra o primeiro set do álbum, abordando novamente uma relação sexual. Ele brinca com as palavras – se tornando quase satírico – enquanto o instrumental de Chibatinha (ATTOOXXÁ) surge por trás. Musicalmente, é a canção mais diferente do restante do repertório. Um número afrobeat com influência de trap, arranjos eletrônicos e uma estética noturna. Também podemos notar dedilhados de um cavaco em segundo plano, além de um fluxo mais melódico e melancólico. “Braille”, a faixa mais conhecida do álbum, conta com a participação de Mahal Pita, conhecido colaborador do BaianaSystem. O lirismo, conduzido pelo sample de “Chanel”, do Frank Ocean, é muito mais íntimo. “Não tem guarda-Sol, quando o corpo frita / Eu tô no Brasil e pra muitos aqui / O futuro é um caminhão-pipa”, ele diz aqui. A diversificada produção conta com uma instrumentação formada pelo baixo, guitarra, percussão e pandeiro. Sua entrega mais romântica cativa com facilidade e torna “Braille” uma das canções mais marcantes do registro.
Com rimas mais cruas e diretas, Rico apresenta “Mudou Como?”, a sexta faixa do álbum. Liricamente, ele relata os conflitos de uma relação abusiva e infiel, embora o instrumental seja dançante. Com auxílio de Chibatinha na guitarra e o baixo marcando os primeiros segundos, Dalasam apresenta um R&B reminiscente de artistas americanos. Em seguida, “Supstah” surge como um balde de água fria depois de tantas desordens líricas. É praticamente a utopia de Rico Dalasam, quando ele se entrega aos seus sonhos mais profundos. Com participação de NettoGaldino, “Supstah” faz mais uso do rap do que do canto, em um esquema de rimas bem construído. Sua voz oscila junto com o instrumental melódico e a percussão bem ritmada. Há presença de cordas, baixo, viola e piano em uma mistura versátil de hip hop, funk, pagode e cumbia. “Circular 3” é um áudio de uma mulher (mãe de Rico) conversando sobre em qual lugar o ônibus passa e se o motorista vai percorrer o caminho correto. É um interlúdio meio confuso e sem propósito que não explora com clareza sua metáfora. Da mesma forma, o interlúdio “Outros Finais” também passa um pouco despercebido. O texto, inicialmente interpretado por Camilla Pellegrini, parece indicar uma conexão espiritual com seus ancestrais. Rico, por sua vez, tenta usar sua fé para encontrar as respostas de que precisa.
Em contrapartida, “Vividir” explora a nostalgia enquanto fala sobre os altos e baixos da vida. O forte instrumental é reforçado pelas batidas de funk e percussão eletrônica. É, certamente, uma das músicas mais poéticas, tendo em vista que resume o tema central do álbum, mostrando que mesmo diante das dificuldades, poderemos sentir alívio. “Um pedaço de colo / Um gole de café / Uma foto de um ano / Que eu não lembro qual é”, Rico diz ao perceber que talvez as coisas nunca voltem a ser como eram antes: “Onde era minha casa não é mais / Onde era minha escola não é mais / Onde era a minha vida não é mais”. O R&B de “Estrangeiro” encerra o LP de forma um pouco decepcionante e previsível. Aqui, Rico tenta se libertar de uma relação tóxica, mas de maneira pacífica. Serve como uma tomada de consciência de que ali não é mais o seu lugar. Talvez significa um momento de cura e libertação para ele: “Fui, porque acabou a fé / Não, porque acabou o amor”, ele canta. Mesmo que algumas faixas tenham sido lançadas no EP do ano passado, “Dolores Dala Guardião do Alívio” ganhou um novo significado. Rico Dalasam utilizou a escrita do álbum para exorcizar seus demônios interiores e abordar temas importantes como homossexualidade, colonialismo e racismo. De fato, “Dolores Dala Guardião do Alívio” é um álbum tocante capaz de atingir diversas vertentes sociais.