Kendrick Lamar compartilhou um novo single, intitulado “The Heart Part 5”, antes do seu próximo álbum, “Mr. Morale & the Big Steppers”, programado para 13 de maio. A faixa o encontra retomando de onde parou em “The Heart Part 4” de 2017. É a quinta parte da série de Kendrick, que sempre precedeu o lançamento de um novo álbum. De fato, cada lançamento da série “The Heart” sinalizou um novo projeto iminente e um novo começo artístico para Lamar. Desde “The Heart Part 1” de 2010, essas músicas se tornaram um espaço para ele refletir sobre sua relação com outros artistas – “The Heart Part 2”, por exemplo, apresentou um monólogo do falecido fotógrafo Dashiell “Dash” Snow. Desde os seus primeiros freestyles, o rapper de Compton sempre abraçou a mudança como um aspecto central de sua criatividade. Quando se trata da arte de contar histórias, ninguém é mais astuto do que ele. Ao longo de seu mandato no rap, Lamar sempre foi revolucionário na maneira como se regenera musicalmente. O videoclipe de “The Heart Part 5” o encontra na frente de um pano de fundo enquanto seu rosto se transforma em celebridades como Lil Wayne, Eminem, Snoop Dogg, Jay-Z, O.J. Simpson, Will Smith, Kobe Bryant, Kanye West e o falecido Nipsey Hussle.
O conceito visual enganosamente coloca em primeiro plano a identidade racial, usando o próprio Lamar e sua propensão mórbida à vitimização. O clipe também inclui um “agradecimento especial” aos criadores de South Park, Matt Stone e Trey Parker. Em “The Heart Part 5”, ele ilustra como cresceu como artista e homem negro. Envolto em uma amostra da sensual “I Want You” de Marvin Gaye, a canção aborda alguns relacionamentos – entre Lamar e seus fãs, entre as culturas, entre um negro e os Estados Unidos, etc. O arranjo de “I Want You” se concentra na evolução gradual das letras e sua profundidade novelística. Referenciando a pandemia, o assassinato de George Floyd e a perda de ícones negros, “The Heart Part 5” foca no sofrimento e na sobrevivência. Kendrick Lamar conseguiu superar e desafiar as expectativas aqui – “The Heart Part 5” é reflexiva, perspicaz e por vezes empolgante. Ele abusa da tradição do R&B e a utiliza como cenário para um monólogo caótico; este é o gênero de “palavra falada”, um hip hop pronto para o deleite de turistas do gueto e fanáticos por celebridades. “The Heart Part 5” é Kendrick gastando quase 6 minutos expandindo sua perspectiva sobre a cultura popular, falando em cadências apressadas sobre cordas majestosas, pianos e tambores agitados.
No início, ele estabelece o seguinte: “Venho de uma geração de dor, onde assassinato é insignificante”. A partir daí, Kendrick passa a fazer rap sobre gerações inteiras de homens negros cujas vidas públicas estão repletas de dores, e ele volta sua suspeita para as instituições e condições que alimentaram sua própria arte: “Na terra onde pessoas machucadas machucam mais pessoas / Que se foda chamar isso de cultura”. Em um ponto, ele canta sobre tocar no Lollapalooza em Buenos Aries enquanto aprende sobre o assassinato de seu velho amigo Nipsey Hussle: “Estou na Argentina enxugando minhas lágrimas cheias de confusão / Água entre nós, outro companheiro foi executado / A história se repete novamente”. “The Heart Part 5” termina com um longo e poderoso trecho de linguagem onde Kendrick se imagina no lugar de Nipsey Hussle durante seus momentos finais. Onde Nipsey uma vez ofereceu palavras sábias para o próprio Kendrick, ele o imagina oferecendo palavras semelhantes a seus amigos, sua família, seus filhos, seu irmão e até mesmo seu próprio assassino: “Eu vi a dor na sua pupila quando apertou aquele gatilho / E embora você tenha me feito um mal terrível, eu fiquei verdadeiramente aliviado / Completei minha missão, não estava pronto para partir / Mas preenchi meus dias, meu Criador estava satisfeito”.
É um estranho e emocionante caso de empatia – um homem se imaginando na pele de outro em um momento terrível. Os seis alter-egos no vídeo são homens negros famosos e polêmicos de uma forma ou de outra. Há O.J. Simpson, que pensou ter transcendido a raça até que seu julgamento por assassinato se tornou um dos momentos que definem a divisão racial na cultura americana. Há Kanye West, o rapper mega talentoso que definiu uma geração e vive lutando contra seus próprios demônios interiores. Há Jussie Smollett, o ator considerado culpado de encenar um crime de ódio contra si mesmo. Há Will Smith, que já foi a maior estrela de cinema do mundo, que deu um tapa em outro homem negro momentos antes de aceitar o prêmio que provou que Hollywood finalmente o aceitou – uma aceitação que o Oscar imediatamente rescindiu. E há dois artistas de Los Angeles. Há Kobe Bryant, cuja competitividade desumana e alegações de agressão sexual o tornaram uma figura divisiva na vida e que morreu ao lado de sua filha em um acidente de helicóptero. E há o velho amigo de Kendrick, Nipsey Hussle, morto do lado de fora da loja que ele abriu em seu próprio bairro.
Em essência, o retorno de Lamar assume uma postura política, semelhante ao “To Pimp A Butterfly” (2015) – daí a referência a Obama, que estava na Casa Branca quando o mesmo foi lançado. Como o 44º presidente, Kendrick é um orador emotivo e “The Heart Part 5” o encontra tentando fazer com que seu lar cheio de crimes mude. De fato, é uma música tão imersiva quanto emocional: “Enquanto eu sangro através dos alto-falantes, sinta minha presença / Para o meu irmão, para os meus filhos, estou no paraíso”. Ele vê sua influência e agora quer ser uma voz da moralidade, não apenas uma estrela do rap. Kendrick Lamar continua debatendo sobre questões difíceis, mas dentro de um contexto mais amplo. Mais uma vez, ele parece estar se dirigindo à sua própria comunidade, bem como a uma América mais ampla – ele reconhece que a violência é muitas vezes a reação dos vitimizados. Em meio às ambiguidades da música, o seu amor pela comunidade negra nunca provoca dúvidas. Sobre a amostra de “I Want You”, ele tenta entender a consciência social inata de Marvin Gaye, mudando a linha do título para algo mais esperançoso e usando o ritmo para transmitir a seriedade de seus sentimentos. “The Heart Part 5” é uma música de grande qualidade que causa muita reflexão. Não consigo imaginar o quão mais rico “Mr. Morale & the Big Steppers” pode ser.