Aos 73 anos, Lonnie Holley lança o seu álbum mais ambicioso.
Em toda a sua vida, Lonnie Holley passou por grandes desafios. Um órfão que viveu um tempo como filho adotivo de uma dançarina burlesca e grande parte do resto de sua infância na Escola Industrial para Crianças Negras do Alabama – uma instituição infernal. Desde cedo, ele sofreu muitos abusos. Felizmente, construiu uma grande carreira como artista visual, poeta e músico. Nativo de Birmingham, Alabama, ele só teve sua primeira oportunidade de lançar um álbum em 2012, quando tinhas 62 anos. Desde cedo, Lonnie Holley sempre demonstrou suas habilidades como artista visual – suas primeiras criações são memoriais feitos de blocos de arenito para uma sobrinha e um sobrinho que morreram em um incêndio, porque a família não podia pagar o enterro em lápides. Tirado de um lugar que ele descreveu como “bem dentro do meu eu eterno”, o seu novo álbum de estúdio, “Oh Me Oh My”, é carregado por uma voz gutural intensamente comovente. Sua criatividade polimorfa o impulsiona de maneiras impressionantes e o disco triunfa em níveis altíssimos. Mais uma vez, ele revisita traumas do passado com uma compreensão dolorosa, mas também inesperadamente esperançosa. É o seu álbum mais substancial e acessível até hoje.
Mais crucialmente, suas meditações e reflexões receberam forma e foco, onde antes apenas vagavam. Usando uma ampla gama de instrumentação e processamento, o produtor Jacknife Lee (que já produziu bandas como R.E.M., U2 e The Killers) ajudou a moldar um som distinto que acena para o jazz, soul, funk e blues. Lee, que co-escreveu a maioria das faixas, trabalhou principalmente com piano, sintetizador, baixo, guitarra e percussão, enquanto outros músicos adicionaram trompas, cordas e guitarras. A primeira apresentação ao vivo de Lonnie Holley foi no Whitney Museum e algumas de suas peças estão no Smithsonian (instituição educacional associada a um complexo de museus, fundada e administrada pelo governo dos Estados Unidos). Como suas montagens feitas de materiais recuperados do lixo, sua música não é ensinada e tem uma crueza sobrenatural. “Oh Me Oh My” é fortemente impulsionado pelo que Holley chama de preocupações “planetoriais”, e sua percepção geral é tão vital quanto as memórias pessoais que ele examina. Holley é frequentemente classificado como um bluesman – sua voz emotiva é bem adequada para o blues. Mas no novo álbum, ele apresenta seu vocal em um amplo conjunto de contextos que transcendem os estilos tradicionais do blues.
O LP ainda conta com uma série de artistas convidados, como Moor Mother, Michael Stipe, Sharon van Etten, Bon Iver, Rokia Koné e Jeff Parker. “Oh Me Oh My” carrega o tipo de impacto emocional que você poderia esperar de um homem negro nascido em 1950 no Deep South (região cultural e geográfica dos Estados Unidos composta por estados do sudeste do país), o sétimo de 27 filhos, que na infância foi atropelado e arrastado por um carro, declarado com morte cerebral e passou meses em coma, e que depois de se recuperar foi enviado para a abusiva Escola Industrial do Alabama para Crianças Negras. Essa escola era o tipo de instituição educacional que mais traumatizava seus alunos do que os educava. Fundada em 1911, depois que o estado do Alabama assumiu um grande campo agrícola na comunidade de Mount Meigs, perto de Montgomery, a instituição correcional juvenil tornou-se famosa pelos horríveis abusos e torturas infligidos a jovens negros. Na década de 60, um século após a Proclamação de Emancipação, jovens presidiários eram forçados a colher algodão do nascer ao pôr do sol; espancamentos e abuso sexual eram comuns. Lonnie Holley, que nasceu em extrema pobreza, estava entre as almas que cumpriram pena nos campos de Mount Meigs, para onde acabou sendo enviado depois de ser preso. E o trauma persiste.
Mesmo aos 73 anos, como um músico de renome internacional, Holley experimenta pesadelos, assombrados por memórias que ele passou em Monte Meigs. Todas essas experiências alimentam o “Oh Me Oh My”, direta ou indiretamente. Alguns anos atrás, em julho de 2021, houve uma exposição de pinturas e esculturas de Lonnie Holley na De Kooning House em Long Island. A coleção, intitulada “Everything That Wasn’t White”, supervisionou uma série de pinturas primitivistas envolvendo uma sala cheia de outras esculturas criadas a partir de lixo de carbono e sucatas industriais. É difícil imaginar o quão improvável foi a ascensão de Lonnie Holley como pessoa e artista. Mesmo uma olhada superficial nos pontos principais de sua vida é em si uma exibição da tragédia humana pós-colonial. Suas exposições sempre foram construídas para serem uma experiência imersiva. Dito isto, “Oh Me Oh My” é outro documento musical sobre a opressão contemporânea, que pela primeira vez o vê saindo da representação dos princípios mais amplos e unificadores de sobrevivência como uma pessoa negra, e olhando para dentro e pessoalmente para tudo o que o levou a isso.
Em “Mount Meigs”, a angustiante peça central, uma tempestade turbulenta de trompas e tambores irrompe ao seu redor. Então, Holley nos transporta 60 anos antes, lembrando dos campos onde trabalhou e o nome do homem que o espancou até a submissão. “Eles tiraram a curiosidade de mim / Eles tiraram isso de mim / Eles gritaram”, ele relata com intensidade. Como boa parte de “Oh Me Oh My”, essa música é um extraordinário livro de memórias, que honra a sua história de sobrevivência. Ele é um artista visual autodidata que se especializou em esculturas vastas – trabalhos que ele molda a partir de materiais descartados, como ossos de animais, sapatos abandonados e peças de aço. Ao longo de “Oh Me Oh My”, ele aplica uma abordagem semelhante à música, criando canções comoventes a partir de traumas que outros preferem esquecer. Fragmentos de guitarra perfuram a base sonora de “Mount Meigs”, da qual surge um padrão de batida urgentemente esmurrado ao lado de instrumentos de sopro. “Eles me deixaram ir de Mount Meigs, Alabama em 1964 / Mas com alguns cortes e contusões que eu nunca esqueceria”, ele canta. Sob a guitarra elétrica e a seção rítmica, “Mount Meigs” usa o blues para expressar um sofrimento inconsolável.
Definitivamente, Holley sabe como compartilhar depredações do Deep South nas décadas de 50 e 60. “Estamos todos sendo testados / Aqui estamos, testando nossas habilidades”, ele declara, pensando em nosso propósito comum. “Mount Meigs” é a apoteose do álbum e se torna cada vez mais viscosa. Aqui, ele ainda murmura a letra mais devastadora do repertório: “Eu quero ir para casa”. Enquanto Holley uiva na impressionante faixa-título, ele combina sua narrativa com o canto melancólico de Michael Stipe. Ao se aproximar do microfone, Stipe sobe e desce suavemente ao fundo enquanto repete a frase principal – um contraponto às recitações familiares de Holley. O efeito é assustador. Como descendente da escravidão, ele explora a linhagem geracional dos seus traumas, dramatizando uma troca entre uma pessoa escravizada e seu escravizador em “Better Get That Crop in Soon”. A escravidão é um tema recorrente tanto nas esculturas de Holley, que retratam navios negreiros, quanto em sua música. Ao sequenciar a música ao lado da autobiográfica “Mount Meigs”, ele traça um paralelo entre sua própria experiência e a de seus ancestrais, todas vítimas da brutalidade sancionada pelo Estado. Os arranjos são um destaque a parte.
Ele começou uma carreira musical para valer aos 60 anos; seus primeiros lançamentos, “Just Before Music” (2012) e “Keeping a Record of It (2013), continham arranjos que serviram principalmente como uma tela para a sua livre narrativa. No extenso “MITH” (2018), sua música assumiu uma forma mais jazzística, com faixas que se desenrolaram ao longo de 7 minutos ou mais. Em “Oh Me Oh My”, as canções são mais bem estruturadas, enquanto os cenários assumem uma vida cinematográfica própria. Assim que o brilho lindamente evangélico de “Testing” se desgasta, o álbum começa sua convulsão agonizante. Essa faixa possui uma melodia de piano vertical carregando o vibrato tocante de Holley, partes iguais de Jimmy Scott e do falecido Bobby Womack. “If We Get Lost They Will Find Us”, com elementos de pop da África Ocidental, apresenta o lamento rouco da cantora do Mali, Rokia Koné, que canta com o seu bambara nativo. Moor Mother confunde histórias pessoais em uma só em “I Am a Part of the Wonder” e “Earth Will Be There”, colocando os ricos detalhes de Holley em comunhão com o free jazz, o electro-funk e o afrofuturismo. “Oh Me Oh My” é o raro álbum virtualmente desprovido de apelo mainstream.
O que é impressionante é que os convidados raramente roubam os holofotes, contentes em servir como parte da colcha de retalhos da arte de Lonnie Holley. A reflexiva “I Am a Part of the Wonder” carrega uma mensagem de confiança enquanto atravessa a vastidão do espaço sideral e desce pelos éons, antes de mergulhar em um ritmo encantador. Ela é adornada com o rap áspero de Moor Mother sob trompetes e percussões. Se isso é feito conscientemente ou não, nunca fica completamente claro. O que importa é o redemoinho hipnótico de baixo e metais que Jacknife Lee apresenta aqui. A condenação severamente propulsiva de Moor Mother combina perfeitamente com o canto granular de Holley. Para qualquer um que tenha acompanhado a ascensão do afrofuturismo, é difícil conceber um contraponto melhor para ele – sua visão apocalíptica se fecha em uma bela escuridão. “Earth Will Be There”, por sua vez, começa com um baixo vibrante, corporal em seu impacto, e a palavra falada de Holley. Em seguida, os sintetizadores expandem seu alcance contra a percussão metálica. Sua voz gradualmente se move pelo discurso, quando na metade, a batida cai, e uma seção de trompas é adicionada. Ainda há uma seção de palavras faladas de Moor Mother com Holley vocalizando no fundo.
Ele então assume o centro do palco, mais uma vez cantando o refrão, que é seguido pelo conjunto completo, agora com backing vocals. É uma canção exuberante e estilística. Sharon Van Etten traz um anseio cansado para “None of Us Will Have But a Little While”, aumentando o êxtase de Holley – essa faixa produz o seu canto mais melódico até hoje. Muito diferente é a aguda “Kindness Will Follow Your Tears”, na qual Justin Vernon, de Bon Iver, empresta suas habilidades de harmonização sobre guitarra, órgão e sintetizadores. Seu falsete gelado impulsiona os vocais principais de Lonnie Holley que, frequentemente, dobra os tons, modulando notas sustentadas para extrair cada pedaço de emoção possível. Cada faixa se torna uma oração de sobrevivência porque ele sobreviveu a circunstâncias extraordinárias e a uma dor inimaginável para chegar até aqui. No entanto, um otimismo improvável está embutido em seu espírito. Ao longo do registro, ele encontra uma espécie de libertação ao nomear sua dor, colocando-a ao lado de seus ancestrais. Em “I Can’t Hush”, ele avalia os abusos infligidos à mãe e avó; Elas ficaram em silêncio e mantiveram tudo “trancado em seus cérebros”. “Preciso das cordas negras da esperança”, ele afirma com o seu sotaque de avô.
Em “Future Children”, Holley reflete sobre a comunicação através das gerações e enfatiza a importância de preservar informações para ajudar as gerações vindouras: “Sem sinal, o sinal perdido / Falha de energia, sem energia”. É uma reviravolta surpreendente; “Future Children” o encontra através de um vocoder, ao passo que arpejos de sintetizador minimalistas e saxofones surgem por trás. Mesmo para aqueles que não estão familiarizados com a vida e o trabalho de Lonnie Holley, as aspirações esperançosas do álbum, que surgiram da tragédia consumada, podem ser uma experiência angustiante. E por um bom motivo; Este álbum é um relato de perdas e traumas, mas o mais importante, tangível e verdadeiro. E apesar de angustiante, ele não desmorona na depressão. Apenas diz o que era e como é. “Oh Me Oh My” é outro álbum memorável e singular que reflete o espírito inquieto de seu criador. Lonnie Holley pode estar olhando para o futuro, mas bem integrado com o passado doloroso. Como grande parte de sua música profundamente pessoal, “Oh Me Oh My” é entregue a uma espécie de serviço espiritual.