Em seu segundo álbum como Tagua Tagua, Felipe Puperi lança as bases para sua marca particular de psicodelia e soul.
Tagua Tagua é o projeto de Felipe Puperi. Mas antes de assumir essa identidade artística, ele foi membro da Wannabe Jalva. Como vocalista da banda, Puperi tocou no Lollapalooza Brasil e abriu para Pearl Jam e Jack White. Apesar de todo o reconhecimento, ele queria fazer algo diferente com uma identidade mais brasileira, e principalmente em português. A mudança começou quando sua banda foi convidada para gravar a música “Mareá” com o músico Curumim no extinto Red Bull Studios. Ter que deixar o inglês de lado para compor em sua língua materna foi um desafio e o estímulo que precisava. Antes disso, a viagem de Puperi ao Chile, no final de 2016, confirmou de vez qual caminho ele queria seguir. Junto com a sua mãe, ele foi para uma cidade do interior do país. Sem saber o nome do local, perguntou a um morador onde eles estavam. A resposta foi: San Vicente de Tagua Tagua. A comunidade do Lago Tagua Tagua, na província de Cachapoal, localizada na região de O’Higgins, não apenas o ajudou a encontrar seu destino, mas também inspirou o nome do projeto. Depois de lançar alguns singles e EPs, Tagua Tagua firmou sua personalidade musical na junção de soul, funk, tropicália, pop e psicodelia.
O seu álbum de estreia como Tagua Tagua, “Inteiro Metade” (2020), ilustrou de forma mais explícita sua variedade de referências sonoras, sobretudo dos anos 70: de Tim Maia a Hyldon, passando por Marvin Gaye, Shuggie Otis e Al Green. Ao contrário de “Inteiro Metade” (2020), o seu novo álbum, intitulado “Tanto”, tem uma maior inclinação para o R&B. O próprio Puperi concorda que o LP anterior tinha uma direção mais soul. Em “Tanto”, ele mudou as coisas porque queria parecer mais linear, de forma que não alterasse o seu humor. Isso também dá às músicas uma leve sensualidade. Desde o primeiro mês da pandemia, antes mesmo de lançar “Inteiro Metade” (2020) e sem saber o que o futuro reservava, Puperi se concentrou ainda mais em suas produções – mesmo que tenha desistido algumas vezes e regressado à medida que novas ideias surgiam. Mas o projeto só decolou quando ele decidiu se isolar em uma casinha de madeira em uma fazenda na periferia de São Paulo, com o apoio de Leo Mattos e João Augusto Lopes. Foi lá que “Tanto” ganhou vida. Mas ele não resolveu tudo em uma única semana, muito menos nos dois meses seguintes. Ele levou algum tempo para respirar.
Ele escreveu as primeiras letras e começou a perceber que um conjunto se conectava com o tema do outro. Na verdade, o álbum trata-se de gostar de estar apaixonado, sentir a química de outra pessoa e apenas flutuar com tal sentimento. Dito isto, “Tanto” serve como um cartão de visita para mostrar a pluralidade musical do Brasil – indo muito além do samba e da bossa nova. Cheio de emoção, Felipe canta com um tenor melismático às vezes caindo em falsetes sutis. Há profundidade nas ricas melodias, nas doces harmonias e nos lindos teclados, que ele próprio toca. As cordas são moderadas e discretas, uma parte sutil da paisagem sonora etérea do álbum. O amor, como ele próprio sugere, é a tônica do repertório, sóbrio e sedutor. Embora cante em português, são referências americanas – como D’Angelo na esplêndida “Brisa” – que coloca Tagua Tagua no mesmo patamar de contemporâneos como Sessa, Tim Bernardes, Bruno Berle, Leonardo Marques e Rogê. Inevitavelmente, “Tanto” tem uma sensibilidade pop e soul que te agarra com facilidade. O adorável som filtrado e ligeiramente fora de forma de “Pra Trás”, processa sua exuberância sonhadora, mas drogada, principalmente nas cordas arrebatadoras e no sutil solo de guitarra.
Borrando as linhas entre o dream pop e o soul setentista, os vocais imaculados elevam a emoção de uma música sobre deixar tudo para trás e seguir em frente. A deliciosa faixa-título, na qual o piano elétrico e o falsete de Puperi fazem maravilhas juntos, mantém o ritmo de baixa intensidade com um adorável refrão. Há um balanço sensual aqui, escovado pelo leve gotejamento rítmico. O arranjo descontraído dá espaço para Puperi contar sua história de “amor pelo bem”. A ponte apresenta um órgão com aquelas ilusórias linhas de bossa nova até chegar em uma fatia suculenta de dance-pop. Tudo se resume aos detalhes. O baterista Leo Mattos adiciona sua benção lo-fi à produção, garantindo que tenha um swing cativante. Viver em uma ilha no norte da Europa significa menos sol e calor do que em países mais próximos da linha do Equador, talvez por isso que “Tanto” é encharcado de vitamina D. Fora de suas óbvias escolhas musicais, “Tanto” abriga um sentimento caloroso que se mantém firme e forte ao longo de toda sua duração. Aqui, há canções de amor envoltas em um soul nebuloso que remonta a Memphis (Tennessee) tanto quanto ao Brasil tropicalista.
Puperi é o cérebro, o coração e a alma deste álbum, igualmente adepto de guitarra elétrica, piano, baixo, teclado e órgão – sua voz delirantemente terna é a cereja do bolo. O álbum tem uma leveza maravilhosamente produzida: há uma paleta bem definida que permeia cada faixa. Uma paleta que se inspira no passado – cordas ao estilo de Bill Withers – e num ângulo contemporâneo, com linhas de sintetizador suaves e arranjos que apontam para o melhor do neo soul dos anos 90. O formigamento de “Me Leva”, outra música de despedida, tem uma forte batida de fundo, mas permanece baixa, enquanto a guitarra atrevida e a interação de teclas pingam sobre as harmonias e os acordes. Esse ambiente pode ser considerado insípido, mas Puperi talvez expresse cansaço aqui porque “já está cansado deste lugar”. O ritmo e o andamento de “Brisa” mantém a vibração suave enquanto seu corpo tenta não se mover. Seu ímpeto funk, com uma linha de baixo furtiva, simplesmente brilha enquanto as camadas de sintetizador, a guitarra e as vozes ondulam em conjunto. “Brisa” tem seu quinhão de variação, um som rico e cativante sobre uma produção expansiva, encharcada de reverberação.
Quando você chegar a “Barcelona”, já estará submerso no universo de Tagua Tagua – uma canção sonhadora, ondulada e meio drogada, onde os movimentos pontiagudos da guitarra e o ritmo sinuoso se misturam com o falsete de Puperi. Em “Starbucks”, ouvimos novamente a influência de D’Angelo, pelo menos na instrumentação. Linhas de teclado e bateria aliadas ao trabalho de guitarra vão de acordes fracos a lindas melodias – seu refrão suspirante sugere algum tipo de resignação. A opacamente intitulada “OODH” continua com uma veia semelhante, mas diminui o ritmo ainda mais. Abraçando um som mais síncrono e ritmo preguiçoso, essa balada combina guitarras escorregadias com violinos teatrais em seu arranjo florescente. No momento em que a chuva elétrica do refrão estoura, você sabe que Puperi está experimentando algo aqui. Charles Bradley e Shugi Otis podem ser citados como pontos de referência, mas isso é mais um enquadramento do que o quadro completo. “Colors” é recheada de nostalgia; seus sintetizadores emborrachados, suas linhas de baixo borbulhantes, guitarras vibrantes e batidas lânguidas, mas precisas, servem um receptáculo altamente afinado. Essa canção chega relativamente otimista e confiantemente contemporânea enquanto ele canta de maneira suave e sussurrante.
“Cada Paso” caminha por um pôr do sol de timbres e aquarelas cósmicas antes de “Te Dizer” levá-lo a violões estonteantes num refrão ao entorno de uma seção de cordas. “Te Dizer” parece uma balada de soul, mas a urgência contida das guitarras elétricas, os acordes e licks ecoantes, levam-na a algum lugar na direção da banda Whitney. Há um sentimento de saudade que permeia todo a tracklist do álbum. “Tanto” manobra sutilmente entre diferentes dinâmicas, e propositalmente, pois é uma vibração que Tagua Tagua queria incutir do início ao fim – canalizando heróis do soul como Bill Withers e Shuggie Otis. Suas músicas definem o brilho e a sofisticação de Puperi dentro da expansão urbana do dia a dia. No entanto, também há um momento de autodescoberta, uma reconexão com sua linguagem que levou a uma revolução pessoal. Sua nova coleção representa mais um passo na definição do som de Tagua Tagua. É um álbum feito de coração aberto, fervendo em vibrações de neo soul com um sutil sabor de MPB. Claro que a paixão pelo soul clássico também aparece, assim como a tensão submersa do funk. Tagua Tagua canta sobre partir, perder e seguir em frente, vestígios de pessoas e lugares, a maravilha e o cansaço dos relacionamentos. Nada de novo, talvez, mas é definitivamente um ótimo álbum.