Dançar no escuro, com lágrimas no rosto, em um processo de auto cura, parece ser a âncora emocional do “Smile”.
Depois de entrar em cena com a icônica “I Kissed a Girl”, Katy Perry se tornou mundialmente famosa. Já se passaram 10 anos desde que o revolucionário “Teenage Dream” (2010) estabeleceu um alto padrão para o pop moderno e a consolidou como um nome familiar. Com esse álbum, ela governou os charts e dizimou os recordes: “Teenage Dream” (2010) se tornou o segundo álbum da história a colocar cinco singles no topo da Billboard Hot 100. Hoje, é considerado um dos melhores álbuns pop do novo milênio. Seus três primeiros discos moldaram minha infância e adolescência, e eu fiquei em êxtase quando a vi se apresentar ao vivo pela primeira vez em 2018. No entanto, ela não está mais no centro da indústria e não conseguiu acompanhar o ritmo de um mundo pop cada vez mais exigente. Coincidentemente ou não, essa semana “Teenage Dream” (2010) completa exatamente 10 anos. Em retrospecto, sua tracklist parece um verdadeiro Greatest Hits; “California Gurls”, “Teenage Dream”, “Firework”, “E.T.”, “Last Friday Night (T.G.I.F.)” e “The One That Got Away” foram inevitáveis naquela época, e quando você ouve, automaticamente é transportado para 2010/2011. “Teenage Dream” (2010) era atrevido, irradiava vitalidade e tinha um grande apelo sexual.
De certa forma, a maior estrela pop da última década sempre foi uma mistura de ironia, sensualidade e vulnerabilidade – suas canções tendem a incorporar um ciclo de positividade e autoajuda. Se “PRISM” (2013) foi uma tentativa de se tornar uma artista mais madura, o álbum seguinte praticamente destruiu tudo que ela construiu. Foi frustrante, pois ela é responsável por algumas das músicas mais divertidas e vendidas de todos os tempos. Não me entenda mal, “Witness” (2017) é um ótimo álbum: contém letras socialmente conscientes, uma produção de qualidade e um sazonamento artístico. Entretanto, pecou pela divulgação desastrosa, péssima escolhas de singles, má gerenciamento de sua imagem e total falta de foco – Perry fugiu totalmente da proposta inicial de “Chained to the Rhythm”. Consequentemente, a mídia e o público não perdoaram e pegaram pesado com as críticas negativas – algumas justificadas, mas a maioria imerecida. Sua queda foi tão inesperada e dolorosa que ela entrou em depressão e passou por momentos sombrios envolvendo sua saúde mental. Mas se “Witness” (2017) representou uma tempestade pública, “Smile” traz de volta a calma e serenidade que vem depois de momentos turbulentos. Ele se encaixa no clima atual e ainda há muito o que apreciar – embora seja marcado por um período depressivo.
Dito isto, nos últimos anos Katy Perry reacendeu seu romance com Orlando Bloom, ficou noiva e, eventualmente, anunciou sua primeira gravidez. Falando nisso, essa semana o mundo deu boas-vindas a sua primeira filha, Daisy Dove Bloom. Agora, Katy Perry está mais focada na família, no amor e no crescimento pessoal, aprendendo a sorrir depois de passar por tantos momentos difíceis. Como um grande admirador, eu fico muito feliz por ela estar tendo uma recuperação tão segura após as lutas envolvendo sua saúde mental. A boa notícia é que agora ela parece confiante e agradecida, retornando ao pop brilhante associado à ela. Ignorando as críticas, Perry exala um novo senso de otimismo. Dito isto, o álbum foi descrito como “histórias de resiliência, esperança e amor” – ela realmente parece rejuvenescida. Muitas faixas a mostram refletindo sobre sua vida e carreira, enquanto ela faz de tudo para deixar o público um pouco mais feliz. Ela é engraçada, vivaz, exagerada e emocional. Algumas músicas possuem clichês envolvendo o auto aperfeiçoamento, mas no geral vai colocar um sorriso em seu rosto. A partir da bela capa que a retrata como um palhaço melancólico, “Smile” exala sua ambição de rir através das lágrimas. Escrito a partir de uma resiliência recém-descoberta, o álbum também revela algumas cicatrizes por debaixo das batidas.
As três primeiras faixas – “Never Really Over”, “Cry About It Later” e “Teary Eyes” – são basicamente sobre erros e arrependimentos; uma tentativa de aprender após o pesadelo em que sua vida estava na sombra do “Witness” (2017). Com faixas inspiradoras como “Daisies”, “Resilient” e “Smile”, ela nos lembra que sempre podemos recomeçar. A maior parte do repertório tem o som pop cativante e borbulhante que estamos acostumados, mas com letras mais reflexivas do que seus discos anteriores. Embora o tom seja extremamente otimista, “Smile” também aborda as dificuldades para encontrar a felicidade. Lançado em 2019, “Never Really Over” abre o álbum da melhor maneira possível – sua melhor canção desde “Dark Horse” e “Walking on Air”. Existem vários motivos para considerá-la uma das melhores faixas do seu catálogo. Enquanto os sintetizadores do Zedd são propulsores, há um sample adaptado de “Love You Like That”, um pré-refrão arrebatador e refrões implacáveis de arrebentar os pulmões. É um electropop deliciosamente maximalista que fornece uma visão sobre ser prisioneiro de erros do passado. Katy Perry luta com um relacionamento, mostrando-se incapaz de deixá-lo totalmente para trás e, eventualmente, chegando à conclusão de que as coisas entre ela e o seu namorado não vão acabar tão cedo.
Com uma aura noturna e hipnótica, “Cry About It Later” lhe dá a oportunidade de ignorar seus problemas em favor de beber e se divertir. “Eu sei que amanhã eu vou estar de ressaca, mas eu estou pronta para um verão sem vergonha”, ela declara. Perry está de coração partido indo para a balada e ignorando a tristeza de uma separação recente – distraindo-se com o álcool e com a perspectiva de um novo amor. Conduzida por sintetizadores oitentistas, a produção é mais sombria e sedutora do que o esperado. Embora alguns possam achar o refrão repetitivo, ele funciona como um mantra para conter as lágrimas. No refrão podemos vê-la finalmente decidindo viver o momento: “Vou chorar por isso mais tarde, essa noite estou me divertindo”. Ela endossa o adiamento da tristeza em favor do prazer momentâneo. Em “Cry About It Later”, ela realmente brilha e flerta com letras surpreendentemente pessoais. “Eu acho que estou pronta pra ser a musa de alguém / Eu acho que estou pronta pra uma tatuagem nova”, ela canta em trechos que nos remetem a “The One That Got Away”. “Fingir até conseguir faz que eu me sinta bem”. Quando você leva em consideração o delicioso solo de guitarra da ponte, essa música se torna ainda melhor.
Mesmo com a simplicidade do arranjo, “Teary Eyes” é um número magnífico. Sua premissa é parecida com “Cry About It Later”, mas não é uma música limitada e se torna um excelente complemento do ponto de vista lírico. Uma joia dance-pop aparentemente inspirada por “Dancing On My Own” da Robyn – uma masterpiece do século XXI. É uma abordagem sincera sobre curtir uma balada com lágrimas nos olhos; sobre perder a alegria em sua vida e dançar em meio à tristeza, prometendo a si mesmo que a música vai te curar. “Teary Eyes”, com sua escuridão e melancolia, encoraja você a continuar “dançando com aqueles olhos marejados”. Mais uma vez, em vez de ficar deprimida, Katy Perry tenta enxergar uma luz no fim do túnel. Ela nos incentiva a continuar dançando mesmo que chorando. Chorar na pista de dança é geralmente aceito como uma terapia da música pop, mas raramente alguém atinge esse auge – felizmente, Katy Perry chegou à perfeição com “Teary Eyes”. Os vocais estão incrivelmente delicados e acompanham as batidas EDM impecavelmente – há sintetizadores, teclados, bateria eletrônica e backing vocals divinos.
O primeiro single do álbum, “Daisies”, aparentemente foi inspirado no nome de sua filha recém-nascida. No melhor estilo de “Firework” e “Roar”, essa música é um hino motivacional. “Eles me dizem que sou louca, mas nunca vou deixar que eles me mudem / Até que eles me cubram em margaridas”, ela canta no refrão. Produzida por The Monsters & Strangerz, é uma canção estridente com sintetizadores, violões e batidas eletrônicas. Ela menciona que seus sonhos pareciam inatingíveis para alguns, mas prometeu para si mesma que conseguiria realizá-los. É uma música simplista com uma reflexão mais pessoal e genuína. Com sua produção reduzida, “Resilient” coloca ênfase em suas palavras, e se torna uma das composições mais eficazes do álbum. “E eu sei que quanto mais eu subo, mais forte o vento sopra”, ela canta com convicção. “Mas você sabe que quanto mais escura a noite, mais brilhantes as estrelas são”. Se reunindo novamente com os produtores de “Firework”, Katy Perry se inclina para algumas metáforas nesta balada edificante. Ela se compara a uma flor que cresce através das rachaduras no concreto, desabrochando após enfrentar todas as estações do ano. A produção do Stargate é saltitante e arejada, ao passo que fornece cordas beliscadas e uma orquestração dramática. “Resilient” possui alguns dos melhores vocais do álbum, além de belas melodias e maior substância emocional.
“Not the End of the World”, por sua vez, possui uma produção influenciada pelo trap e semelhanças com “Dark Horse” e “Black Widow” – ademais, também repousa na melodia de “Na Na Hey Hey Kiss Him Goodbye” da banda Steam. Os versos em staccato e o refrão crescente realmente lembram “Dark Horse”, não é à toa que é uma música tão viciante. Liricamente, Perry aborda a recepção de seu último álbum, pedindo ao ouvinte para não perder a esperança. A produção é dramática, se baseia em um lirismo apocalíptico, fornece vocais dinâmicos e possui batidas violentas. Aqui, ela usa seu talento para um número mais sombrio e eufórico. Ela pragmaticamente canta que o desespero não é a saída, a vida pode continuar mesmo depois do fracasso. A faixa-título a coloca de volta no chão, exaltando sua força interior e se mostrando completamente grata – conforme a produção nos remete a “Birthday” e “This Is How We Do”. “Smile” pode se referir à sua reação pessoal após o passo em falso do “Witness” (2017). É uma canção eletrizante de nu-disco onde ela pontua que “a rejeição pode ser a proteção de Deus”. É uma celebração onde ela finalmente encontra a felicidade em sua vida novamente. Sob o sample de “Jamboree” de Naughty by Nature, a produção recheada de trompetes e saxofones é completamente explosiva.
Katy Perry já trabalhou com o disco anteriormente, mas “Champagne Problems” chega em um momento em que o estilo está dominando o mainstream. O refrão é um dos mais diretos, e a simplicidade realmente funciona. Ostentando uma linha de baixo funky, ela celebra seu atual relacionamento: “Estou tão feliz por termos chegado tão longe”. Perry canta sobre o quão longe ela e Orlando Bloom chegaram e celebra tudo o que superaram juntos, antecipando a vida de casados. A produção interpola cordas de disco com uma linha de piano para criar um hino incrivelmente efervescente. É certamente uma das melhores faixas do álbum – além de nos levar ao epicentro dos Bee Gees, quando o disco era considerado um grande entretenimento. “Tucked” segue uma linha parecida com “Champagne Problems”, assim como também foi produzida por Johan Carlsson e John Ryan. Ambas faixas possuem cordas ou metais, guitarra ou baixo e um toque especial dos anos 70 ou 80. Continuando com as vibrações de disco – com um riff de guitarra arrogante – , Perry oferece uma fuga para um parceiro com quem ela não faz sentido no papel. Uma canção lindamente atraente onde ela também imagina diferentes cenários com seu interesse amoroso – o ofegante interlúdio “na na na” é especialmente adorável.
Lançado no ano passado, “Harleys in Hawaii” envelheceu muito bem – o romance se desenrola como um prazer na última parte do álbum. Se não exatamente aventureira, é uma canção pop e tropical com influências de trap. Eu diria que é definitivamente a música mais sexy do álbum, e o videoclipe só confirma essa suposição. Produzida por Charli Puth, “Harleys in Hawaii” contém uma melodia praiana formada por guitarras acústicas, sintetizadores e tambores contorcidos. Katy Perry canta sobre desfrutar de um passeio de moto pelo Havaí com o seu namorado. O refrão é incrivelmente relaxado, mas ainda cativante e gruda na cabeça com facilidade. O que você faria se soubesse que tem só mais um dia de vida? É a pergunta que Katy Perry faz a si mesma na brilhante “Only Love”. Com um toque gospel familiar, que se inclina para o sentimentalismo – especialmente por causa das harmonias do refrão – é uma boa demonstração de sua habilidade vocal. As letras são definitivamente identificáveis neste momento incerto que o mundo vive.
“Only Love” é a coisa mais próxima de uma balada que temos no álbum. Produzido por John DeBold, é sobre a clareza que surge após o trauma. “Eu ligaria para minha mãe e diria que sinto muito / Eu nunca retorno suas ligações”, ela reflete. “Eu colocaria meu coração e minha alma em uma carta / E mandaria pro meu pai”. Os acordes de teclado, a linda melodia, os sintetizadores arejados e as harmonias vocais formam a combinação perfeita. É uma música pessoal que a vê refletindo sobre sua vida até agora, considerando seu relacionamento com seus pais e declarando suas intenções de mudar sua visão perante o mundo. A doce e acústica “What Makes a Woman” encerra o álbum e aponta para uma direção promissora. No entanto, termina cedo demais – possui apenas 2 minutos e 11 segundos de duração. Com um toque country e folk, órgãos e alguns floreios eletrônicos, é um excelente discurso sobre feminilidade – aqui, ela consegue mostrar sua sabedoria: “É a maneira como mantemos o mundo inteiro girando em um par de salto alto? / Sim, é isso que faz uma mulher”. Na sociedade de hoje, muitas vezes precisamos de lembretes de que é aceitável não se encaixar em um molde.
Aqui, Katy Perry desacelera um pouco para cantar sobre suas experiências como mulher. Ela reconhece que as mulheres precisam de forças para enfrentar um mundo movido pelo patriarcado. Como diz a letra, “Você poderia passar a vida inteira, mas você não poderia descrever o que faz uma mulher”. “Smile” parece ser dividido em três parte: a dor, a cura e o amor. Ela passou por todas essas fases nos últimos três anos. Pode não ser um álbum tão forte quanto o “Teenage Dream” (2010) ou “PRISM” (2013), mas é coeso, autêntico e pessoal. Mas não o julgue pela miscelânea de singles que surgiram no decorrer de 2019 e 2020. Tudo faz sentido como uma obra completa. Não é uma reinvenção para ela, mas é uma ótima tentativa de seguir em frente após o fracasso do “Witness” (2017). Suas letras mantém o otimismo com coloquialismos irreverentes, muitas vezes apresentados de maneira sincera e relacionável. O álbum também vê um retorno ao seu estilo de auto-empoderamento – ela continua fornecendo afirmações positivas de que as coisas vão melhorar. Dançar no escuro, com lágrimas no rosto, em um processo de auto cura, parece ser a âncora emocional do álbum.