Nesse álbum gravado em 1972, Marvin Gaye conseguiu ser consciente, desafiador, ambicioso e compassivo.
Em 02 de abril de 2019, Marvin Gaye completaria 80 anos de idade. Em comemoração, “You’re the Man”, o projeto arquivado por ele durante sua era mais prodigiosa, finalmente viu a luz do dia. No início dos anos 70, ele e sua crescente lista de projetos musicais, dominaram a cultura americana – por um momento, ele estava no topo da América. Essa corrida começou com os Estados Unidos se envolvendo seriamente com “What’s Going On” (1971), o primeiro álbum conceitual de soul e R&B. Colocando três singles no top 10 das paradas americanas e evoluindo para um lançamento icônico no cânone da Motown, “What’s Going On” (1971) colocou Marvin Gaye em órbita ao lado de astros do rock. O sucesso o fez gravar e lançar a trilha sonora do filme “Trouble Man”, outro sólido sucesso comercial e crítico. Aqui, ele empacotou seus talentos por trás da produção como nunca antes visto. Entre os anos de 1971 e 1973, ele gravou faixas para o que seria um álbum histórico, “Diana & Marvin” (1973). Isso levando em consideração que, apenas dois meses antes, ele lançou o glorioso “Let’s Get It On” (1973). Alimentando esse momento, Marvin Gaye gravou o “You’re the Man” em 1972.
No entanto, ficou desiludido quando o primeiro single não foi um crossover pop. Triste com essa gravação, mulato em se mudar com Berry Gordy e a Motown para Los Angeles, Marvin congelou por um minuto. Então, rapidamente a inspiração retornou. Durante esse período, ele gravou músicas que ultrapassaram o valor de um álbum, enquanto produziu uma série de baladas dolorosas e trabalhou com o compositor Will-Hutch – então conhecido principalmente pelo hit “I’ll Be There” (The Jackson 5). Gaye também se juntou a Hal Davis, que estava preparando o álbum com a Diana Ross, para criar outra joia da atualidade, “The World Is Rated X”. Com exceção da faixa-título, nenhuma outra foi lançada naquela época. Isso prova que os executivos da Motown perderam a oportunidade de mostrar mais de sua persona apaixonada. O álbum, repleto de baladas, apelos à ação política e mergulhos em várias diretrizes do funk dos anos 70, possui uma versatilidade impressionante. No entanto, o cara apaixonado, mesmo que presente, não é a atração principal por aqui. É uma das várias personas que complementam o álbum, em vez de dominá-lo.
Com o intrincado acompanhamento musical do grupo de Hamilton Bohannon e dos Funk Brothers da Motown, Gaye se cercou de pessoas requisitados e, coletivamente, conseguiam produzir baladas delicadas e peças ornamentadas de funk. Esse lançamento póstumo mostra que Marvin Gaye não só conseguiu crescer, mas também se esforçou mais como compositor, cujo material questionava a política de seu próprio país e não apenas propagava a personalidade de Berry Gordy. Preocupado com a guerra imperial, governos hipócritas, políticas raciais de exclusão e desastres ecológicos, Marvin Gaye era um músico que lutava pela libertação que ele mesmo nunca conseguiu alcançar pessoalmente durante sua vida. Ao longo do caminho, ele demonstrou um alcance imenso. No decorrer de um único álbum, Gaye conseguiu ser consciente, pensativo, comprometido, desafiador, ambicioso e compassivo. “You’re the Man” captura esses recintos, pontuando-os com voos hipnotizantes para o funk e soul por meio de ritmos tingidos pela conga. Não é um álbum conceitual conciso e perfeitamente construído como o “What’s Going On” (1971), ou erótico como o “Let’s Get It On” (1973). Afinal, havia um motivo pelo qual ele decidiu arquivar o “You’re the Man”.
E uma questão essencial permanece: é realmente um álbum que ele gostaria que fosse lançado? Mas, ao ouvi-lo 47 anos depois de ter sido abandonado, “You’re the Man” coloca o próprio tempo em relevo, oferecendo-nos uma visão revisionista de como Marvin Gaye administrou sua criatividade logo após seu sucesso no início dos anos 70. Ele carregou a mensagem musical de artistas da Motown como The Temptations e Steve Wonder para inaugurar a era do rádio no início dos anos 70. E ao lado de figuras como Isaac Hayes e Curtis Mayfield, Gaye ajudou a transformar 1971 no ano em que os álbuns de negros importavam tanto ou mais do que os singles. Segundo relatos, no entanto, Gaye teve dificuldades para acompanhar o que estava acontecendo. Em “Woman of the World”, o funk afro-cubano, produzido por Freddie Perren e Fonce Mizell, ouvimos Gaye falando sobre os direitos das mulheres em uma escala global. “Você já percorreu um longo caminho”, ele canta no refrão. Outros temas incluem o questionamento dos assassinatos diários ocorridos no Vietnã e nas cidades do interior, onde as margens financeiras são manipuladas diariamente contra pessoas negras.
Co-escrita por seu colaborador Kenneth Stover, a escaldante faixa-título continua sendo uma síntese surpreendente do estado nauseante e complicado da política eleitoral americana no início dos anos 70 – é uma obra-prima sobre promessas de campanha vazias, desconectadas da ação política, que ameaçaram a democracia americana. Consequentemente, “You’re the Man” sente temperatura do país em 1972, acumulando fatos e fazendo perguntas para quem está no poder. “Não nos dê seu sinal de paz / Vire-se para roubar as pessoas cegas”, ele diz. Lançado em 26 de abril de 1972 como seu primeiro single após o “What’s Going On” (1971), “You’re the Man” subiu nas paradas apenas algumas semanas depois que aviões americanos lançaram mais bombas sobre o Vietnã do que em qualquer momento desde 1968. Enquanto a guerra aumentava perturbadoramente, a ácida temporada de campanha eleitoral presidencial também começava. candidato democrático tinha que enfrentar para permanecer na corrida. Naquele ano eleitoral tumultuado, o interesse dos negros em reconstruir a sociedade para garantir a plena participação de todos foi abalado por preocupações mais pragmáticas relacionadas com a conquista de cadeiras eleitorais.
A aprovação da legislação dos Direitos Civis em meados da década de 60, em conjunto com a guerra de Lyndon B. Johnson contra a pobreza, não conseguiu transformar a realidade cotidiana da vida dura para muitos trabalhadores negros e pessoas pobres. Alguns políticos negros até se tornaram culpados dos mesmos abusos e negligência da comunidade que seus colegas brancos. Entusiasmado com a oportunidade de participar da política eleitoral e cético em relação ao resultado, “You’re the Man” move-se nas duas direções – cheio de repulsa e igual otimismo. O DNA musical de “You’re the Man” o torna um primo próximo de “Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)”. A canção também apresenta estilos vocais de marca registrada (ele canta essencialmente em contraponto a si mesmo), juntamente com uma gama completa de inalações, como se para sugerir essas palavras por si só não fosse suficiente para transmitir emoção. Além da faixa-título e da balada “Piece of Clay”, um punhado de outras faixas também diagnosticam a condição nacional. “The World Is Rated X” é uma canção funk que visa nos convencer de que “o mundo está em uma situação grave”, mas temos que “dar uma olhada lá fora, é onde a verdade é realmente dita”.
Com violão e cordas arranjadas de forma dramática, aprendemos que a solução para o tabu mundial é espalhar o amor e a paz por todo o país. “The World Is Rated X” é um discurso contra o pecado que parece querer suprimir a permissividade libertária dos anos 70 em favor da política de respeitabilidade conservadora. Mas Gaye gravou “The World is Rated X” em um momento marcado pela crescente popularidade de filmes como “Super Fly” (1972). Nesse vazio, músicos negros como Marvin Gaye, Aretha Franklin e Stevie Wonder emergiram como figuras quase messianistas. Ao gravar “The World Is Rated X”, Gaye se apresenta como um herói, salvando-nos de nossa própria queda comunal em um comportamento retrógrado. A sedutora “I’m Gonna Give You Respect” resplandece com trompas, tons estridentes e grandes harmonias; isso gira em torno de uma história sobre como a insegurança do Marvin Gaye de que sua garota o deixe o faz querer ser um homem mais respeitoso. “You’re That Special One”, “We Can Make It Baby” e “Give My Life for You” são canções românticas, pelo menos no grande contexto do cânone musical do Marvin Gaye.
Mas romântico, “My Last Chance”, pesado pelo sax, permite que ele exiba seu tenor suave e flexível: “Eu sou apenas um cara tímido / Estou tão nervoso / Garota, mas tenho que tentar”, ele confessa. Para quem procura uma prova do poder de sua voz, eu submeto “Symphony”, uma balada autoproduzida com enormes proporções de sua destreza vocal. Salaam Remi, o compositor e produtor associado com o Nas, Fugees e Amy Winehouse, remixou a produção com cuidado subtrativo, sabendo o momento certo para inserir instrumentos como bateria, violão, violino e a própria voz do Marvin Gaye. O anseio de sua intimidade também se estendia a situações familiares. “I Want to Come Home for Christmas”, repleta de batidas e um monólogo de palavra falada, entrega sua piada durante quase um minuto – é quando aprendemos que a música é realmente um lamento profundamente empático sobre um prisioneiro de guerra , inspirado por seu irmão Frankie, que serviu na guerra do Vietnã e cuja situação já inspirou “What’s Going On” (1971). “Christmas in the City”, por outro lado, é um rabisco de piano elétrico sem palavras; seu jazz é assustador e esquecível. “You’re the Man” inclui uma versão alternativa fascinante e descontraída da faixa-título com a letra “talvez o que este país precise é de uma senhora presidente”.
Vale lembrar que “You’re the Man” foi composto e gravado em abril de 1972, apenas um mês antes da Emenda da Constituição de Igualdade de Direitos ser aprovada pelo Congresso e enviada aos estados para ratificação. Em fevereiro de 1972, a ativista Angela Davis foi libertada da prisão sob fiança; em janeiro do mesmo ano, a imperturbável congressista Shirley Chisholm se tornou a primeira mulher afro-americana a concorrer à presidência. Enquanto Gaye comentava sobre uma mulher presidente, várias mulheres negras – de Roberta Flack e Nina Simone a Mavis Staples e Aretha Franklin – fizeram declarações artísticas igualmente profundas, combinando raça, gênero, política e prazer de maneiras interseccionais que seus colegas homens geralmente falhavam ao fazer. A maneira como as mulheres negras eram politicamente ativas no início dos anos 70 e, ainda assim, reprimidas por estabelecimentos sexistas e racistas também é o que torna a citada “Woman of the World” o número mais estúpido do álbum. Em seus altos e baixos, “You’re the Man” – um álbum auto cancelado, que chegou 47 anos depois em meio à cultura do cancelamento – é um fascinante vislumbre do que um grande artista pode fazer.
Esse LP revela Marvin Gaye como um ser humano multidimensional e complicado que merece nosso respeito, mas não necessariamente nossa adoração desenfreada – não mais do que as figuras políticas que ele tão acertadamente critica. Ele era um único músico carismático cujo gênio icônico estava entrelaçado com os problemas contínuos na água que o informavam. Um profundo presente musical do passado que notavelmente tem muito a dizer sobre nossa condição atual, “You’re the Man” nos apresenta a verdade inequívoca de que, por sermos todos falíveis, ninguém deveria ser o “cara”. A Motown poderia ter marcado um grande sucesso com “You’re the Man”, se tivesse sido lançado nos anos 70. Em vez disso, os egos maciços retiveram uma parte significativa do seu legado, que, em alguns aspectos, nunca se recuperou. No entanto, apesar de suas infelicidades, “You’re the Man” é um disco essencial. É o suporte perfeito para o que estava acontecendo. Enquanto “What Going On” (1971) analisou o estado do mundo na época, esse álbum fala sobre possíveis soluções para os problemas mais preocupantes da sociedade – interpretadas por um dos cantores mais celebrados e influentes da história.