Com quase 72 minutos, é o álbum mais longo de sua carreira – Björk encontrou o amor e a verdade através de cada nota do “Utopia”.
Nos últimos anos, Björk tem sido cada vez mais exigente com seus trabalhos, tanto que o “Vulnicura” (2015) – inspirado por seu divórcio com Matthew Barney – foi incrivelmente desafiador e confessional; era tudo sobre o desgosto amoroso e a dissolução familiar. A declaração final da narrativa arrebatadora do “Vulnicura” (2015) foi que, depois de tudo isso, Björk estava finalmente sozinha. Em contrapartida, “Utopia” explora a contradição em busca de unidade – é mais fácil criar uma utopia isoladamente. No entanto, a maioria de nós persiste em fugir da solidão, um ato que requer muita paciência, compaixão e sacrifício, porque acreditamos que, ao organizar um mundo perfeito para dois, podemos chegar mais perto de conhecer o amor. Enquanto “Vulnicura” (2015) lidou com uma perda pessoal, o novo álbum procura celebrar os sentimentos universais que envolvem o amor e a natureza. Descrito como ambiental e tematicamente político, “Utopia” apresenta uma Björk mais feliz e positiva. Dito isto, embora tenha seções abundantemente sombrias, o tom é bastante edificante e esperançoso. Em comparação com alguns dos seus discos mais diversos, “Utopia” restringe-se a uma atmosfera suave. Mas embora isso possa fazer o álbum parecer leve e agradável, é facilmente um dos seus trabalhos mais ambiciosos e abstratos até à data.
Novamente ela trabalhou com Alejandro Ghersi (também conhecido como Arca), a venezuelana que já produziu com Kanye West e FKA twigs. Portanto, você vai encontrar paisagens sombrias e ameaçadoras, batidas distorcidas e sons frequentemente confusos. A tensão criada por ela acabou tornando-se a companheira ideal para os vocais expressivos da Björk. É uma longa uma repreensão à violência herdada pelos homens e uma oferta generosa reproduzida musicalmente com elegância e paixão. As quatro décadas da carreira da Björk podem ser vistas, simplesmente, como uma longa jornada para detalhar cada energia espiritual e emoção que existe no mundo. Sua relação com o sentimento é particularmente espacial. Ao viver nos ambientes construídos pela Björk, você encontra paisagens emocionais, lugares escondidos e dimensões internas. A música de Björk agora existe em pautas musicais cada vez maiores, sua franqueza é aquela que raramente é abordada em uma conversa casual: como é realmente a sensação de perder alguém? Como é realmente a sensação de começar a amar de novo? O primeiro foco foi o “Vulnicura” (2016), um álbum de cordas e batidas elétricas que fundamentou sua música para muitos ouvintes.
Mas uma cratera de perda é mais fácil de descrever do que o sentimento que pode começar a preenchê-la e, consequentemente, uma névoa mais densa paira sobre o “Utopia”. Sem dúvida, sua paleta sonora é mais luminosa e arejada, principalmente por conta da utilização de flautas e outros instrumentos de sopro. Ademais, possui um pano de fundo muito rico e bem elaborado, incluindo a utilização de canto de pássaros que foram registrados pela própria Björk na Islândia. As estruturas das músicas são imprevisíveis e desconcertantes, enquanto o conteúdo lírico é complexo e conflituoso. Ao misturar batidas desarticuladas e distorcidas com orquestras de flautas, harpas e ruídos de pássaros, “Utopia” parece a trilha sonora perfeita para algum passeio pela floresta. A ousadia e excentricidade da Björk merece ser mais uma vez aplaudida. Sua rica produção em camadas apresenta texturas estáveis, experimentais e melodias pouco convencionais. Esse estilo se tornou quase um sinônimo dos seus lançamentos. Além disso, ficou ainda mais evidente do quanto ela é uma artista confiante e autoconsciente. Com quase 72 minutos, é o álbum de estúdio mais longa da sua carreira. E se parece obscuro, exuberante e autoindulgente, é porque ele realmente é. Enquanto as cordas dominaram o “Vulnicura” (2015), a flauta é o principal instrumento do “Utopia”.
Com isso em mente, tudo começa com os efeitos aleatórios definidos pela maravilhosa “Arisen My Senses”. Essa canção fornece um vislumbre do que está por vir. Desta vez, Björk e Arca permitiram que ondas mais coloridas dominassem sua tristeza. Começando com canto de pássaros e o som de uma fita sendo rebobinada, ela apresenta acordes de harpas e arranjos que expandem-se lentamente. É o primeiro sinal de que a paisagem emocionalmente triste do “Vulnicura” (2015) desapareceu. Para qualquer outro artista, oferecer uma faixa sem um refrão bem definido seria impensável. Mas Björk consegue se sair muito melhor em meio a batidas eletrônicas e sons incomuns. “Esse excesso de mensagens de texto é uma benção?”, ela pergunta em “Blissing Me” enquanto mantém a exuberância e natureza romântica da primeira faixa. É uma canção que celebra os aspectos aparentemente mundanos do namoro moderno, como compartilhar MP3 e enviar mensagens de texto o dia todo. Sua estrutura é rítmica e a atmosfera luminosa, reforçada particularmente pela harpa mais delicada. O ritmo esvoaçante é um reflexo da excitação da Björk, ao passo que sintetizadores e flautas complementam os sentimentos das letras. “Utopia” está cheio de canções de amor, marcado por floreios clássicos e escrito em uma linguagem franca.
O primeiro single, “The Gate”, é uma música ambiente e eletrônica que fala sobre as possibilidades de um novo amor. “Minha ferida curada do peito, transformada em um portão”, ela canta sob sintetizadores. “De onde eu recebo o amor, de onde darei amor”. As letras parecem uma poesia moderna e transmitem uma sensação espiritual, como a própria Björk havia dito. Sua profunda melancolia é quase uma reminiscência do “Vulnicura” (2015), assim como os sintetizadores e os elementos percussivos. É uma música delicada e minimalista com uma produção inicialmente ambiental, que lentamente preenche o vazio com graves profundos e elementos eletrônicos. Sob a melodia temperamental e transcendente, Björk pisa em um território inusitado. Grupos de flautas e sintetizadores passam de um lado para o outro, sem se preocupar com a batida passando por baixo. A faixa-título, por outro lado, fornece imediatamente um coral de flautas e toques de música clássica que reforçam o ímpeto e enigma das letras. A delicada flauta toca sob a percussão embaralhada criando uma mistura que no papel não deveria funcionar. Felizmente, a combinação entre o primitivo e o futurista, casou perfeitamente com a Björk. “Como capturar todo esse amor?”, ela pergunta em “Body Memory”.
Ela sabe que não é fácil, “como enfiar um oceano por uma agulha”. É uma das faixas mais longas do álbum – com quase 10 minutos de duração. As flautas continuam aumentando o drama da produção, além de cordas sinistras definirem o ritmo. Ela reflete de forma lúcida e abstrata sobre muitas coisas – incluindo o amor, a paixão, o sexo, a vida rural e urbana, as questões legais e o futuro. “Body Memory” é seguida suavemente pelos próximos 5 minutos de “Features Creatures”. Embora a produção seja minimalista e enigmática, Björk é afetada por homens que carregam semelhanças com o seu ex-marido. Posteriormente, as flautas e batidas eletrônicas retornam com força total em “Courtship”. Assim como o título sugere, ela fala sobre o ciclo vicioso que envolve qualquer tipo de namoro. Em “Losss”, ela aborda as perdas que experimentou na vida, descrevendo um amor condenado. À medida que avança, a produção fica cada vez mais intensa; com harpas trovejantes e tambores particularmente pesados. A dor do “Vulnicura” (2015) esquenta em “Sue Me”, uma despedida para seu ex-marido que, em 2015, a processou pela custódia de sua filha. Aqui, ela se mostra claramente preocupada com o bem-estar da criança. Sonoramente, “Sue Me” mergulha em uma atmosfera psicodélica com efeitos inesperadamente sutis.
Ela depende fortemente da percussão corporal da Arca, particularmente um bumbo marcial. Os traumas do passado não são usados como uma arma, mas se tornam símbolos de um sistema. Ela canta que “ele puxou do seu pai, que puxou do seu pai, que puxou do seu pai”. Como sempre, Björk se torna uma caçadora das origens de suas emoções e uma guardiã do seu futuro. Ela coloca todas essas palavras em seu mezzo-soprano empurrando-as para fora com toda força que pode. “Tabula Rasa” restaura a beleza do “Utopia” através de sons misteriosos. Novamente, as cordas e as elegantes flautas adicionam uma dimensão extra. “Meu desejo mais profundo é que você esteja imersa em graça e dignidade”, ela canta para sua filha. Não há imagem ou metáfora por baixo, apenas uma grande carga de emoção. “Claimstaker” é um número mais rítmico, embora também possua um cenário rico e exuberante. Ela começa com uma linha de sintetizador galopante que se transforma em cordas cada vez mais inchadas. “Essa floresta está em mim”, Björk proclama correspondendo ao clímax definitivo do álbum. Depois do requintado e breve instrumental “Paradisia”, temos a pensativa e encantadora “Saint”. Ela transmite a mesma vibração sentimental do resto do álbum e fala sobre o grande poder da música.
Para encerrar o repertório, Björk foca em seguir em frente ao invés de viver no passado. “Imagine um futuro e esteja nele / Sinta essa incrível instrução, mergulhe nele / Seu passado está em um loop, desligue-o”, ela canta em “Future Forever” – uma das melhores canções de sua carreira. Que simplicidade brilhante suas palavras agora possuem. Então, quando Björk finalmente descreve sua utopia, ela já parece gravada no mármore. “Future Forever” não tem flautas ou sons eletrônicos, apenas um órgão sintetizador sobressalente e sagrado. Após a inquietação do álbum, ela flutua em êxtase. Nele está um mundo íntimo e perfeito. Ela invoca o amor que tentou descrever, aquele oceano através de uma agulha. Aqui, a névoa do “Utopia” começa a se dissipar, as flautas se desfazem, os modos se tornam maiores e a debulha da Arca diminui. Desde o refrão de “Jóga” não há uma sensação de liberação e catarse em um disco da Björk. Suas letras se tornaram a força que forja sua voz e a música em torno dela. Eles podem se arquear e se curvar de maneiras novas e estranhas, mas o conteúdo continua inabalável. As maiores canções de amor são medidas pela profundidade de onde emergem. Se essas palavras parecem insondáveis, um pouco demais, talvez seja porque nosso mundo não foi construído para suportá-las.
“Utopia” é guiado por flautas da mesma forma que o “Medúlla” (2004) foi composto de vozes humanas, o “Volta” (2007) era formado por metais e o “Biophilia” (2011) apresentava grandes coros. Mas “Utopia” é, mais precisamente, um álbum de sopro e vento. Depois de algumas batidas de harpa nas duas primeiras canções – o banquete arrebatador de “Arisen My Senses” e o toque suave de “Blissing Me” – o álbum vive quase inteiramente suspenso no ar. Sua orquestração é realizada por um pequeno conjunto de flautas e uma coleção de cantos de pássaros selecionados da Islândia e da Venezuela, terra natal da Arca. O arranjo do álbum esvoaça por toda parte, e é difícil de entender. Björk não encontra o amor com três acordes, ela encontra o amor através de um interrogatório de cada nota que existe. Acompanhando esse clima arejado e grandioso estão alguns momentos de leviandade. Björk é uma das poucas artistas que continuam inovando sua paleta sonora mesmo depois de uma longa estrada. Cada um dos seus álbuns traz algo verdadeiramente belo, estranho e imprevisível. Afinal, ao longo de sua carreira solo, ela foi frequentemente vista como inovadora e experimental em meio aos sons que desafiam o convencional. Björk conseguiu novamente criar um álbum coeso e intrigante. “Utopia” é definitivamente diferente de qualquer coisa que você ouviu e vai ouvir em 2017.