No impressionante “Lemonade”, temos uma Beyoncé sábia, realizada e em defesa de si mesma.
Beyoncé começou a criar seu reinado em 1998 como integrante do grupo Destiny’s Child. Após sair em carreira solo, com o “Dangerously in Love” (2003), ela passou a cimentar o seu status de estrela pop. Álbuns como “B’Day” (2006) e “I Am… Sasha Fierce” (2008) venderam milhões de cópias e produziram diversos hits. O lançamento surpresa do seu auto-intitulado álbum, por sua vez, abriu caminho para outros artistas utilizarem uma técnica de marketing parecida. “Lemonade”, seu sexto álbum de estúdio, é outro importante passo artístico na direção certa. Enquanto o disco auto-intitulado foi um grande salto em sua carreira, é o “Lemonade” que concretiza tudo isso. Lançado ontem, ele é acompanhado por curtas-metragens concebidos para ilustrar os conceitos por trás da produção de cada faixa. Enquanto seu antecessor apresentou um videoclipe para cada música, “Lemonade” foi acompanhado pelo lançamento de um filme exibido pela HBO. É um álbum visual em sua forma mais pura e original, conforme músicas e vídeos caminham lado a lado. Inicialmente, o projeto foi disponibilizado para streaming on-line através do Tidal, onde Beyoncé atua como coproprietária. O anúncio do álbum começou no Super Bowl desse ano, quando ela divulgou “Formation”.
Quando “Lemonade” finalmente foi apresentado ao público, tivemos a chance de notar o quanto ela estava mais liricamente pessoal, íntima e agressiva. Ela fala sobre suas raízes, cultura negra, racismo, feminismo, fé, identidade e infidelidade. O álbum conta com a participação de músicos como Jack White, James Blake, Kendrick Lamar e The Weeknd. Em sua essência, “Lemonade” é um álbum pop, mas também incorpora diversos outros gêneros como R&B, hip hop, soul, funk, blues, rock, country, gospel e trap. A diversidade visual do filme corresponde a variedade de estilos do álbum, que vai desde baladas à poderosas batidas. Sua atmosfera é mais obscura, ousada e melhor trabalhada que a dos seus álbuns anteriores. Resumidamente, “Lemonade” é o crescimento de uma mente criativa e o aperfeiçoamento artístico de uma das maiores estrelas pop da atualidade. A partir do momento que o R&B de “Pray You Catch Me” abre o álbum, você imediatamente percebe que o seu som sofreu algumas mudanças. “Dá pra sentir o gosto da desonestidade / Está na sua respiração, enquanto você passa de modo descuidado”, essas são as primeiras palavras do álbum. É a introdução adequada para o som mais cru e sofisticado. Nessa faixa, ela fala sobre desonestidade e se comporta de forma bastante vulnerável.
É uma canção simplista que marca um tema comumente explorado no álbum. Suas palavras são acompanhadas por delicados arranjos, acordes de piano e cordas encantadoras. Os vocais frágeis e sussurrados aparecem sobrepostos, antes da música se transformar em uma balada. Em vez de um, “Hold Up” utiliza três amostras em sua composição; ela contém sample de “Can’t Get Used to Losing You” (Andy Williams), “Maps” (Yeah Yeah Yeahs) e “Turn My Swag On” (Soulja Boy Tell ‘Em). As amostras foram muito bem trabalhadas e estabelecidas por Diplo e Ezra Koenig. É um número de reggae e dancehall, onde ela sugere uma possível infidelidade do seu marido, o rapper Jay-Z. O ritmo congelado de “Hold Up” é maravilhoso, principalmente por causa da batida tingida de reggae. A melodia, as buzinas e o tom descontraído criam um perfeito equilíbrio com as letras sobre traição. “Don’t Hurt Yourself”, com Jack White, a leva para fora de sua zona de conforto, a fim de fornecer um poderoso blues rock. Ela possui sample de “When the Levee Breaks”, do Led Zepellin, além dos vocais mais crus da Beyoncé até à data. Ela continua o conceito explorado em “Hold Up”, após lidar novamente com o adultério.
Com uma entrega agressiva, ela canta: “Que porra você acha que eu sou? / Você não é casado com uma vadia qualquer, garoto”. Com ajuda dos fortes tambores e das guitarra distorcidas de Jack White, Beyoncé mostra toda sua raiva e frustração. É uma clara mensagem para Jay-Z, conforme ela canta nas últimas linhas: “Este é seu aviso final / Você sabe que eu te dou vida / Se você tentar essa merda outra vez / Você vai perder sua esposa”. O poder dessa canção é fenomenal – repleta de energia e vigor. Produzida por MeLo-X e Wynter Gordon, o electropop “Sorry” é uma das faixas mais descontraídas do álbum. Mais uma vez, as letras fazem referências a possível traição do Jay-Z. Beyoncé faz questão de expressar o quanto lamenta pela suposta infidelidade. Assim que foi divulgada, “Sorry” foi incansavelmente citada nas redes sociais, principalmente por causa da linha: “É melhor ele ligar para a Becky com o cabelo bom”. Todos começaram a se perguntar: quem seria Becky (gíria para mulher branca)? Suposições a parte, ouvimos uma Beyoncé cansada das desculpas do seu marido. Durante o refrão, ela deixa claro que não está nem um pouco arrependida: “Desculpe, mas eu não sinto muito”. Ela está com uma raiva reprimida, mas livre de qualquer preocupação referente a sua vida amorosa.
O conteúdo lírico é aberto a interpretações, mas também possui uma natureza reveladora e entrega ligeiramente emotiva. Além das letras poderosas, “6 Inch” inclui amostras de “Walk On By” de Isaac Hayes. É uma música sinistra marcada pela presença apropriada do The Weeknd – uma vez que soa como uma canção do próprio. Sua atmosfera lembra os hits do Abel, mas a narrativa é tudo sobre Beyoncé. Não é tão íntima ou pessoal como as outras faixas, mas é brilhantemente executada. Dessa vez, ela usa metáforas para simbolizar sua riqueza e poder. “Saltos de quinze centímetros / Ela chegou na balada sem se importar com ninguém”, linhas como essas amplificam a emancipação feminina. Ela mostra que não precisa de um homem para ser poderosa e independente. “6 Inch” é uma peça confiante de R&B alternativo com vibrações eróticas fortemente guiado por linhas de baixo pulsantes e batidas estrondosas. Ela contém a mesma sensualidade do seu álbum auto-intitulado e uma das melhores pontes criadas pela Beyoncé. “Daddy Lessons” é exatamente sobre as lições que ela aprendeu com o seu pai enquanto crescia no Texas. Ela fala do relacionamento de ambos e reflete sobre as diferentes coisas que ele a ensinou sobre a vida. Bey relembra a relação complexa que teve com Matthew Knowles, que também já foi seu empresário.
Essa faixa é uma verdadeira surpresa, pois canaliza sua rica herança sulista. “Daddy Lessons” é um country com uma vibração bluesy e influências de bluegrass. Ela prova o quanto é versátil e surpreende ao explorar tão bem a música country. A incrível produção começa com brilhantes instrumentos de metal. O dedilhado acústico da guitarra e os handclpas completam a bela interpretação da Beyoncé. Depois de apresentar letras dolorosas sobre traição, ela se vê curada pelo amor em “Love Drought”. Essa canção introduz a segunda metade do álbum e a leva em direção ao perdão. Totalmente vulnerável, Bey fala sobre seu relacionamento de forma desastrosa, mas tentando olhar para o lado bom de tudo isso. É mais uma pista de R&B alternativo com uma performance vocal emocional. A produção é sutil, discreta e encontra sua perfeição nos detalhes. É guiada por teclados cintilantes, sintetizadores atmosféricos e uma percussão mais crua. “Sandcastles”, por sua vez, é a balada de piano que examina as mentiras do marido e diserta sobre seu relacionamento instável. Uma canção soul extremamente pessoal, onde ela usa um castelo de areia como metáfora para falar de sua vida amorosa. “Construímos castelos de areia que foram levados pela água / Eu te fiz chorar quando fui embora”, ela canta dolorosamente.
Essa música apresenta alguns dos vocais mais emocionantes da Beyoncé – no clímax, sua voz está ainda mais dolorosa e vulnerável. Ela mal se esforça para conseguir atingir notas perfeitas carregadas de mágoa e angústia. “Forward”, com James Blake, dura apenas 79 segundos e funciona como um interlúdio. É muito breve para realmente ser considerado um dueto entre dois. Seu lirismo parece uma continuação de “Sandcastles”, com linhas como: “Volte a dormir no seu lugar preferido, bem ao meu lado”. Os vocais do Blake e o singelo piano dão uma sensação sombria para a canção. “Freedom” é um hino afro-americano onde Beyoncé aborda o estado atual do racismo. Ao lado de “Formation”, é a faixa mais politicamente carregada do álbum. Kendrick Lamar a auxilia com um verso excepcional. É apropriado ele aparecer nessa música, considerando que a desigualdade social e a cultura negra tornaram-se conceitos dos seus álbuns. Seu verso dá um novo ritmo, encaixa-se de forma coesa e acrescenta uma carga de drama. “Sete declarações falsas sobre o meu caráter / Seis holofotes brilhando em minha direção / A polícia me perguntando o que tenho em meus bolsos”, ele recita ferozmente. “Freedom” é um hino para todos os negros e um verdadeiro protesto – também há uma conexão com o movimento ativista Black Lives Matter.
A produção é uma fusão de blues, gospel, R&B e hip hop, com toques psicodélicos e amostras de “Let Me Try” (Kaleidoscope). Tudo termina simbolicamente com um verso recitado pela avó do Jay-Z. Sua fala, aparentemente, foi a inspiração para o título do álbum: “Eu tive meus altos e baixos / Mas eu sempre encontro a força interior para me ajudar / Me serviram limões, mas eu fiz uma limonada”. Letras que falam sobre amor, perdão e confiança, são o cenário perfeito para a radiante “All Night”. É talvez a primeira canção de amor do “Lemonade” – onde Beyoncé exalta sua intensa paixão pelo marido. É uma balada midtempo que lida com a dor do passado, mas com a esperança de um belo futuro. Um hino de R&B tingido de reggae com amostras de “SpottieOttieDopaliscious” do Outkast, dedilhados de guitarra, trompas e cordas fornecendo o pano de fundo. Além do refrão crescente, ela apresenta um dos vocais mais arejados da Beyoncé. A hesitação das letras e sua voz angelical torna tudo isso ainda mais tocante e glorioso. “Ok senhoras, agora vamos entrar em formação”, ela canta em “Formation”. Apresentada pela primeira vez durante o intervalo do Super Bowl 50, é sua música mais politicamente carregada até a presente data.
“Vocês haters passam vergonha com esse papo de Illuminati”, ela canta na linha de abertura. “Meu pai é de Alabama, minha mãe de Louisiana / Você mistura esse negro com essa crioula / E faz uma Texana”. Boa parte dos versos abordam o empoderamento feminino e o orgulho de ser uma mulher negra. O fato de prestar homenagens às suas origens, faz dessa canção uma celebração da cultura negra. Com grandes tensões raciais acontecendo nos Estados Unidos, é bom ver uma celebridade como ela contribuir e tentar conscientizar de alguma forma. Sonoramente, “Formation” também surpreende, pois apresenta excelentes arranjos e batidas minimalistas. O instrumental marcha durante a música enquanto ela ostenta orgulhosamente o seu poder feminino. Como um todo, “Lemonade” é o ápice da criatividade e inovação da Beyoncé. É o seu trabalho mais forte, seja estilisticamente, artisticamente ou sonoramente falando. As letras, encharcadas de honestidade, são uma autêntica viagem pela sua vida. O núcleo do álbum é eficiente e incrivelmente universal. É impressionante a forma como ele passeia por diferentes gêneros e ainda permanece coeso. Beyoncé é uma das artistas mais bem sucedidas e influentes de sua geração. Ela tornou-se um ícone moderno não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. “Lemonade” é apenas a coroação e afirmação do seu reinado na música.