Com “DAMN.”, Kendrick Lamar continua uma das séries mais impressionantes de álbuns de qualquer artista na memória recente.
Socialmente consciente, a discografia do Kendrick Lamar se destaca facilmente no vazio que rodeia o hip hop contemporâneo. “good kid, m.A.A.d city” (2012) e “To Pimp a Butterfly” (2015) são possivelmente os álbuns de rap mais importantes do século XXI. Dito isto, Lamar possui a grande habilidade de criar um som diferente a cada novo álbum. Na superfície, “DAMN.” é um projeto de hip hop tradicionalmente excepcional; sintetizadores, batidas, rimas furiosas e narrativas inigualáveis substituem a estética maximalista de jazz rap do álbum anterior. Uma das primeiras coisas que notamos aqui é o título de suas músicas; apenas uma palavra em letras maiúsculas seguidas de um ponto final; são capítulos que falam sobre sua vida nos últimos anos. Provavelmente, um dos momentos mais discutidos seja a amostragem de uma notícia, onde Geraldo Rivera critica sua performance no BET Awards. Mais uma vez, as letras são hipnotizantes e conceituais – parecem um diário de sua vida. Entre os temas principais, encontramos reflexões religiosas e comentários sobre a cultura do hip hop. Lamar continua oferecendo o mesmo som narrativo que percorreu seus álbuns anteriores, tentando gerenciar sua espiritualidade, medo, vulnerabilidade e insegurança.
Certamente, “DAMN.” não é tão ambicioso quanto “To Pimp a Buttlerfly” (2015), mas é muito mais forte e coeso do que o “untitled unmastered.” (2016). De muitas maneiras, é o seu álbum mais sombrio e auto isolado. Sonoramente, é uma saída radical de qualquer coisa que ele já fez antes. Em vez de se aprofundar novamente no jazz rap com progressões funky, ou explorar algo inteiramente novo e experimental, o álbum se enquadra dentro de uma paisagem sonora comercial. Mas contar histórias ainda é uma das maiores habilidades do Kendrick; e de alguma forma, ele melhorou. A produção do álbum é tensa e limpa, mas esquizofrênica, muitas vezes juntando dois ou três loops em uma faixa e oscilando entre os tempos, mais parecidos com os sintetizadores do “good kid, m.A.A.d city” (2012) do que com os solos de metais do “To Pimp a Butterfly” (2015). Aqui, ele se recusa a se identificar pelo tom de sua pele, mas fluente no conteúdo de seu DNA. A primeira faixa, “BLOOD.”, retrata um visual crítico de uma mulher cega que supostamente procura por algo que perdeu. Lamar oferece sua ajuda, mas a mulher se volta e diz que ele perdeu a vida. É uma maneira dolorosa de apresentar um álbum apropriadamente intitulado. Esta situação pode ser uma metáfora para o sistema de justiça americano injusto que aprisiona homens negros como ele.
Pode-se dizer que o sistema de justiça “cego” prende injustamente as minorias nos Estados Unidos e cria um ciclo de encarceramento e brutalidade. Dito isto, podemos presumir que “DAMN.” será o álbum mais crítico do Kendrick Lamar. Um projeto premeditado e não apenas uma coleção aleatória e cronologicamente organizada. Definitivamente, existe uma narrativa lírica e um conceito por trás das 14 faixas. Nesse LP, parece que Lamar está olhando no espelho e enfrentando quem ele realmente é e quem se tornou dentro da indústria do hip hop. “DNA.” é uma fatia impetuosa de hip hop produzida por Mike WiLL Made-It. Uma canção distorcida com fluxo mais agressivo, batidas de trap e chimbais em expansão. Ademais, uma amostra de “Gimme Some Ganja” (Rick James) é jogada criativamente na mistura. “YAH.” tonifica as coisas com letras mordazes em cima de batidas geladas, sintetizadores, elementos de trip hop e vocais mais relaxados. “Eu sou um israelita, não me chame mais de preto / Essa palavra é apenas uma cor, não são mais fatos”, ele cospe enquanto as guitarras invertidas surgem por trás. Seu instrumento nasal é distinto e inimitável, uma vez que desliza sem grandes esforços em “PRIDE”; uma peça soulful onde ele lamenta que “promessas são quebradas e mais ressentimentos vem à vida, barreiras raciais fazem pouco de você e eu”.
Enquanto “ELEMENT.” tem um tom mais escuro e acordes de piano, o jazz rap de “FEEL.” evoca a imagem da imoralidade em meio a sombrios e solitários sintetizadores. “LOYALTY.”, produzida por DJ Dahi e Sounwave, possui a participação da Rihanna. É uma música de hip hop e R&B incrivelmente atraente com grande senso de diversão. Rihanna fez um excelente trabalho ao comandar o refrão com seus vocais distintos enquanto Lamar cospe suas rimas raivosas. Curiosamente, “LOYALTY.” contém amostras de “24K Magic” do Bruno Mars. O primeiro single, “HUMBLE.”, fala sobre ter dinheiro e ainda ser humilde – como o próprio título sugere. Sua batida não é tão colorida quanto o jogo de palavras, mas é viciante o suficiente para se destacar. O rapper aborda tudo por aqui, desde a riqueza até a positividade. Musicalmente, “HUMBLE.” é bastante simples, com cordas de piano e handclaps fornecendo a base principal. As batidas eletrônicas são combinadas com a camada repetitiva de piano. Embora Lamar sempre teve preferência por batidas mais escuras, dessa vez ele preferiu seguir por outro caminho. Ele eliminou as amostras de soul e funk em favor de um som trap. A batida é incrivelmente mínima, mas exala uma energia efervescente quando misturada ao fluxo.
Ironicamente, você não ouve ele se vangloriando sobre as coisas que conseguiu. Ele chega a mencionar um acidente vascular cerebral e as imperfeições das mulheres. “Eu tô cansado pra caralho desse monte de Photoshop / Me mostra alguma coisa de verdade, tipo uma bunda com estrias”, ele questiona abertamente as normas da sociedade referente a beleza. Aparentemente, Lamar quer que outros rappers sejam mais humildes e sempre se lembrem de quem eles eram antes da fama. A simplicidade do refrão (“Baixa a bola, calma aí vagabundo, seja humilde”) é o que faz essa música se tornar tão distinta. A cativante “LOVE.” faz ele escavar uma batida de trap que poderia ter sido tomada diretamente de “Hotline Bling”, do Drake. Os vocais e falsetes de Zacari se misturam perfeitamente ao fluxo sintonizado do Kendrick Lamar. O resultado é extremamente atrativo e, talvez pela primeira vez em sua carreira, genuinamente romântico. “LOVE.” possui basicamente o refrão mais doce que ele já criou, graças em parte aos vocais. Em outras palavras, é a mais sincera balada radio-friendly de sua discografia. Outro inesperado recurso do álbum é a banda U2. Dada a abordagem complexa e multifacetada do Kendrick, podemos entender o porquê ele quis incluir uma das maiores bandas da história no álbum.
“XXX.” é essencialmente duas músicas em apenas uma. A primeira metade, um ataque implacável contra o assassino do único filho de um amigo, dá lugar a uma acusação mordaz da violenta cultura americana. É uma colaboração controversa e devidamente política. Quando os irlandeses aparecem você se surpreende porque soa muito melhor do que o esperado. O instrumental consegue chegar aos vocais de Bono através de elementos funky, enormes tambores, sintetizadores iminentes e sirenes de polícia. “Mas a América é honesta ou nos aquecemos no pecado?”, ele pergunta enquanto lamenta a ascensão da direita branca nos Estados Unidos. Músicas como “FEAR.” são uma análise de sua riqueza e afirmação de seu título como “o maior rapper vivo”. Ele lida com o passado e revisita sua infância nas ruas de Compton. Sob a produção de West Coast hip hop e blues – cortesia de The Alchemist – Lamar nos leva por uma jornada de ansiedade e medo. “O meu maior medo foi julgado”, ele revela. “Como eles me olham e refletem sobre mim, minha família, minha cidade”. Ele também retransmite ameaças diárias de sua mãe (“Vou bater na sua bunda, quem comprou isso? Você roubou”) e de seus vizinhos (“Provavelmente morrerei nessas festas em casa fodendo com vadias”).
“GOD.” possui um título autoexplicativo – uma canção fortemente sintetizada onde Lamar celebra seu sucesso em vez de reforça-lo. Ele sempre foi um talentoso contador de histórias, e essa habilidade também está em plena exibição na faixa final. “DUCKWORTH.” é um conto com a máxima de precisão e detalhes. Semiautobiográfica, a música fala sobre uma discussão entre o seu pai e o jovem Anthony Tiffith. Musicalmente, abre na forma de uma balada vintage antes de ser interrompida por batidas de hip hop. É uma história de origem preciosa entregue sob um ritmo magistral. Íntimo e introspectivo, Kendrick Lamar criou outra obra-prima moderna. Ele permanece sem medo de mostrar sua vulnerabilidade ao embalar o “DAMN.” com emoção e auto-reflexão. Depois de quatro álbuns, é cada vez mais fácil classificá-lo como um dos melhores rappers de todos os tempos. Suas habilidades técnicas, visão artística e constante reinvenção, o coloca acima de qualquer outro artista de hip hop da atualidade. Equilibrando sua introspecção profunda com um interessante apelo pop, ele simplesmente criou outro projeto excepcional. Em outras palavras, “DAMN.” é mais um capítulo brilhante na história do maior rapper vivo.