O novo álbum de Fiona Apple é uma obra-prima ilimitada. “Fetch the Bolt Cutters” é exatamente o que nós esperávamos que fosse: simplesmente brilhante!
“Fetch the Bolt Cutters” não poderia ter chegado em um momento melhor e Fiona Apple sabia disso. Como muitos artistas, ela decidiu lançar um disco mais cedo, neste caso, cerca de seis meses antes do previsto. E como muitos de seus colegas, ela acidentalmente lançou um álbum espetacularmente adequado ao momento atual – até escreveu e gravou em sua própria casa. É um registro pouco convencional, mas da maneira que geralmente esperamos da Fiona Apple. Sua estrutura, se é que pode ser chamada assim, é extremamente complexa e aparentemente aleatória. Suas letras, tanto cantadas quanto faladas, são apresentadas entre diferentes vocalizações, que variam entre gritos, assobios e sussurros. Poucos artistas poderiam oferecer o mesmo alcance musical que ela. É um álbum caótico que, sob muitos aspectos, serve como uma reação para o mundo ao seu redor. Fiona Apple lida com muita dor e mágoa, abordando todos os danos que sofreu nos últimos anos, desde pequenos contratempos até profundas feridas. É um retorno realmente triunfante e oportuno após um hiato de 8 anos. Coincidentemente, a maior parte do álbum foi gravada em sua casa em Venice Beach. Um lançamento bastante afortunado, pois reflete a situação em que estamos. E como todos nós estamos em casa, o projeto exemplifica o chamado à liberdade que não temos no momento, mas queremos desesperadamente.
Assim como seus antecessores, o álbum apresenta principalmente baladas de piano apoiadas por guitarra, baixo e percussão. Apple não está familiarizada com o estranho e desequilibrado, por isso, desta vez, ela se vê completamente a frente do seu tempo. “Fetch the Bolt Cutters é refrescante em um momento de restrição; é o álbum perfeito para esses tempos imprevisíveis. Novamente, ela se revolta repetidamente contra o mal que os homens fazem às mulheres e aos efeitos indiretos disso. “Quando soube o que ele fez, me senti perto de você”, ela confessa a nova namorada do seu ex na perturbadora “Jornal”. Em “For Her”, ela diz: “Você me estuprou na mesma cama em que sua filha nasceu”. É uma linha chocante e arrebatadora que, depois de uma música alegre que espeta a masculinidade performativa, serve como um soco no estômago. Apple também analisa sua solidariedade e responsabilidade em relação a outras mulheres, às vezes reais e às vezes imaginadas, mas intensamente sentidas de qualquer maneira. “Eu me pergunto o que ele está dizendo sobre mim”, ela reflete na citada “Jornal”, forjando uma camaradagem em sua própria cabeça com uma mulher que ela imagina ter sido ferida da mesma maneira que ela foi. Em “Shameika”, Apple relembra um momento de décadas atrás, quando uma colega de classe disse que ela “tinha potencial”. Nessa única linha, ela captura o quão poderosas as palavras de elogio podem ser, quando entregues da maneira certa, na hora certa.
Fiel à forma, no entanto, Apple não se limita à raiva e resignação. Sua inteligência está nítida como sempre, e este álbum a encontra mais pontiaguda do que nunca. A complexidade e a brusquidão com que ela muda para a melancolia e a raiva são incrivelmente convincentes. “Fetch the Bolt Cutters” a vê mais uma vez fazendo música de forma singular e em seus próprios termos. Faz oito anos que ela nos presenteou com o clássico “The Idler Wheel Is Wiser Than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More Than Ropes Will Ever Do” (2012), e muita coisa mudou desde então. Não vou mencionar as mudanças sociais, culturais e políticas das quais o novo álbum dela parece ter derivado. É notável que uma artista de 42 anos, um recluso aos padrões do século XXI, que está na indústria desde meados dos anos 90, esteja no centro das atenções novamente. E o que talvez seja mais notável do que isso é o próprio álbum, um avanço ainda mais artístico que o “The Idler Wheel Is Wiser Than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More Than Ropes Will Ever Do” (2012), que por si só já parecia um refinamento magistral de seus talentos. “Fetch the Bolt Cutters” parece uma mutação ousada, um álbum que se liberta de muitos temas do seu passado, mantendo somente o essencial. É difícil pensar em músicas recentes com tão poucos pontos de referência óbvios, de maneira que faz todas as músicas anteriores parecerem um simples aquecimento.
Mas não falo isso para manchar o seu já excelente catálogo, mas para enfatizar o grau de progressão deste LP. É um registro impulsionado por ritmos pulsantes e pontuados por fortes cargas de emoção. Ela nunca teve medo de lançar músicas bagunçadas ou abrasivas, ou que envolvam emoções complexas, mas isso parece ter um novo nível de grandeza. Músicas como “Relay”, “For Her” e “On I Go” parecem declarações propositais – mantras raivosos criados exclusivamente para um mundo fodido. Por falta de uma descrição melhor, essas músicas são fodas pra caralho, e de uma maneira surpreendentemente nova para ela. Dito isto, ainda existem muitos prazeres convencionais escondidos aqui. “I Want You to Love Me” é uma maneira perfeita de começar, impulsionada por uma figura de piano incrivelmente linda e uma melodia que se transforma de forma imprevisível. Uma de suas grandes habilidades como compositora são as mudanças melódicas que pega o ouvinte completamente desprevenido. Este álbum está cheio de momentos assim, como as harmonias do coral de “Newspaper”, ou o pré-refrão de “Cosmonauts” – provavelmente a canção mais antiga aqui. Nessas músicas, como em grande parte do álbum, há uma sensação de que ela está magistralmente discutindo o caos, permitindo a quantidade certa de liberdade, mas mantendo uma atenção cuidadosa à forma.
Apple nunca foi fã da estrutura verso-refrão-verso-refrão-ponte-refrão – consequentemente, prefere reunir músicas de partes aparentemente díspares, cuidadosamente construídas e perfeitamente sintonizadas, para gerar um tipo de catarse emocional. Suas letras ainda são tão brilhantes quanto suas invenções. Há menos tristeza em sua poesia, mais raiva e medições provenientes de auto interrogatórios. Ela ainda pode destruir casualmente um ex-namorado de merda melhor do que qualquer um, como em “Under the Table”: “Eu gostaria de comprar um par de botas com sola de almofada / Para ajudá-lo em sua escalada”. A faixa-título é completamente lírica, uma história pessoal que parece fazer tudo de uma vez, lidando com celebridades, relacionamentos ruins, ciúmes e vergonha. Mas a esperança, as notas inspiradoras do refrão, ouso dizer, parecem um avanço – há uma sensação de que ela está escavando seu passado com a intenção de avançar ainda mais. “Ladies” é outro destaque: leve, divertida e incrivelmente linda – uma peça jazzística igualmente comemorativa e depreciativa. “Heavy Balloon”, um exame devastador da depressão, possui um refrão estrondoso e encantador, enquanto “Drumset” é o tipo de réquiem sutilmente corrosivo sobre um relacionamento. “Fetch The Bolt Cutters” é o ápice da Fiona Apple, ele pede que tudo o que precisa ser mudado, deva ser alterado, e se houver resistência – bem, busque os malditos cortadores de parafuso.
“Cosmonautas” a encontra tentando entender um relacionamento monogâmico. Ela enquadra a música com um tom de blues e linhas memoráveis como: “Seu rosto inflama minha paciência / O que quer que você faça vai dar errado”. O tom muda quando o refrão entra em ação, todos os instrumentos são arrancados e a sua voz se aproxima intimamente de um vazio realçado por um suave zumbido coral. “Senhoras, senhoras, senhoras, senhoras”, ela canta em “Ladies”, uma faixa jazzística de baixo ritmo. Ela tenta amenizar os sentimentos difíceis que as mulheres têm em relação a outras mulheres, especialmente se elas estiveram com o mesmo homem. Essa pode ser a música mais fácil de escutar, uma vez que sua voz está suave e relaxada. Fiona Apple costuma fazer as coisas do seu jeito, como sempre fez. “Fetch the Bolt Cutters” possui diversas curvas emocionantes. O álbum transpira liberdade e restrições, e pode ser apenas o material que recordamos quando pensamos na pandemia. É, de alguma forma, o equilíbrio perfeito de impureza e polimento, de raiva e quietude, e de olhar profundamente para dentro e firmemente para fora. Até suas origens parecem prescientes – a maioria foi gravada na sua casa usando o GarageBand – muito antes que ela soubesse que seria lançado em um mundo como o de hoje. Enquanto todos gastamos mais tempo conosco do que nunca, a rainha da introversão nunca se sentiu tão oportuna.
É difícil não ouvir “Fetch the Bolt Cutters” como o arco climático de uma jornada e o próximo passo natural de uma viagem intensamente pessoal – e ainda mais difícil lembrar que todo esse progresso foi feito em meros cinco álbuns e duas décadas. Oito anos depois, Fiona Apple parece ter atingido um novo e sólido equilíbrio. Não, não é acessível – requer muita atenção -, mas te recompensa com mais riqueza do que qualquer outro álbum dela. Há os típicos floreios que qualquer pessoa familiarizada com o seu catálogo espera: notas além do prazo de validade, ritmos que lembram bandas militares, mudanças constantes e ruídos completamente inesperados. Mas onde, às vezes, no passado, isso parecia levemente teatral, não há um momento desperdiçado no “Fetch the Bolt Cutters”. Para um álbum tão descontrolado e imprevisível que apresenta vocalistas tão díspares e os cachorros da Fiona Apple, é perfeito e rigidamente editado. É impossível saber o que acontecerá no próximo minuto de qualquer música, sem falar na próxima faixa. Isso é chocante, mas igualmente incrível. Liricamente, é denso e muitas vezes difícil de decifrar. Mas o seu humor irônico de marca registrada brilha mais forte do que nunca. Não me lembro de ter dado uma gargalhada enquanto ouvia um álbum pela primeira vez, mas aqui todas as músicas me proporcionou um sorriso. Isso não é uma tarefa fácil para um álbum que ferve de raiva – da resistência à opressão.
Aqui, ela é petulante e determinada. Até os momentos mais sombrios de “For Her” são compensados com alegres trechos de “bom dia”. Seria fácil perder de vista o brilho deste álbum entre os elogios recebidos. Mas Fiona Apple entendeu a importância da voz das mulheres e de passar um tempo com você mesma. Quando era uma jovem artista, no final dos anos 90, ela escreveu canções penetrantes sobre, entre outras coisas, suas experiências com agressão sexual e doenças mentais – temas que a cultura pop predominante evitava até o século XXI. Os críticos elogiaram sua música, mas zombaram de sua sinceridade; em retrospecto, você tem a sensação de que a presença de um cérebro tão talentoso, articulado e torturado na cabeça de uma adolescente, foi algo impressionante. Duas décadas depois, Apple superou seus inimigos e agora vive uma vida à prova de tabloides em Venice Beach. Como companhia, ela tem seu cachorro e um colega de quarto. Confortável, apesar de sua autora estar em semi-reclusão, o álbum chega como uma mensagem ideal para os tempos atuais. O que faz do “Fetch the Bolt Cutters” um registro tão extraordinário, surpreendente e essencial é a força que ele dá para outras mulheres. Desta vez, ela começa a mirar nos homens que nunca tiveram que enfrentar nenhuma consequência por suas ações.
Essa mudança sutil de direção lírica não é totalmente inesperada, pois suas músicas se afastam cada vez mais de críticas privadas e causam introversão em assuntos mais amplos, mesmo que todos pareçam fazer parte de um pequeno círculo social. Em “Newspaper”, ela escreve sobre uma mulher em um relacionamento com um homem com quem costumava estar e, portanto, sabe o quão perigoso ele é. “Fiquei preocupada quando o vi começar a cobiçar você / Quando soube o que ele fez, me senti perto de você”, ela canta sobre a bateria barulhenta e o loop arrulhado. “Fetch the Bolt Cutters” expande o som caseiro do “The Idler Wheel Is Wiser Than the Driver of the Screw and Whipping Cords Will Serve You More Than Ropes Will Ever Do” (2012) para extremos ainda maiores. Ele percorre histórias angulares com ajuda da bateria e percussão, às vezes apresentando sua voz às custas de instrumentos familiares, como guitarra e piano. Isso não quer dizer que o piano não seja usado com frequência. As citadas faixas de abertura, “I Want You to Love Me” e “Shameika”, constroem suas melodias de maneira bastante sucinta. Mas o seu interesse pela percussão domina o álbum. De fato, “Fetch the Bolt Cutters” a encontra recuperando sua voz, assumindo o controle e até se divertindo com essa confiança recém-descoberta.
Certamente “Rack of His” é bastante atrevida, especialmente quando ela abre a música dizendo: “E te segui de quarto em quarto sem prestar atenção / E não foi porque eu estava entediada”, tudo em cima de ocasionais vibrafones. Há muito espaço entre as batidas de tambor do “Fetch the Bolt Cutters”, mas é frequentemente preenchido com sua voz, muitas vezes empilhada em cima de si várias vezes. O assunto em questão é pesado e está presente em nossas vidas cotidianas, mas isso não quer dizer que a “Fetch the Bolt Cutters” não seja caprichoso. À medida que as músicas suavizam musicalmente, o mesmo acontece com sua voz. Em “Heavy Balloon”, ela não hesita em falar sobre sua luta contra a depressão: “Pessoas como nós ficam tão pesadas e tão perdidas às vezes / Que o fundo parece o único lugar seguro que você conhece”. O título do álbum foi derivado de uma frase dita pelo detetive de crimes sexuais Gillian Anderson, quando ela estava tentando libertar uma garota que foi horrivelmente abusada. Dito isto, às vezes é o medo de outras pessoas que está prestes a recriar seus traumas do passado. Quando chegamos na última faixa, “On I Go”, ela descobre verdades mais profundas sobre seu estado emocional. “Fetch the Bolt Cutters” não é sua defesa, sua polêmica e nem sua confissão. É seu foco nos males do mundo. Em suma, é certamente o melhor álbum da Fiona Apple até hoje.