Confessional, “NU”, cuja capa traz a cabeça do Djonga numa bandeja, revela um rapper falando mais consigo mesmo.
“Todo artista está sempre pelado, mostrando todas as suas contradições”, essa é uma das explicações que Djonga deu para o título do seu quinto álbum de estúdio, “NU”. Esse registro é o resultado de um dos anos mais sinistros do rapper mineiro: traz sentimentos acumulados durante a pandemia. Desde 2017, todo dia 13 de março ele lança um novo álbum. Foi assim que aconteceu com “Heresia” (2017), “O Menino Queria Ser Deus” (2018), “Ladrão” (2019) e “Histórias da Minha Área” (2020). Consequentemente, sempre que nos aproximamos dessa data, os fãs esperam, ansiosos, por um novo álbum. Desde “Heresia” (2017) até “NU”, deste ano, ouvimos as mesmas histórias: racismo, brutalidade e desigualdade social. O mais curioso é que, embora ele continue falando sobre os mesmos temas, sempre consegue se destacar, artisticamente falando. Considerado um dos nomes mais influentes do hip hop nacional, Djonga chama a atenção pela língua afiada e agressiva. Sua intenção sempre foi mostrar que o hip hop não é uma “música marginalizada”, como um dia foi considerado o samba. Ele nasceu em Belo Horizonte, na Favela do Índio, e cresceu no bairro de São Lucas, Santa Efigênia.
Começou a compor em 2010 com apenas 16 anos, inspirado pelo funk e rap nacional – seu primeiro CD foi do grupo Racionais MCs. Hoje, suas músicas e seus videoclipes acumularam milhões de visualizações no YouTube e, entre outras conquistas, foi o primeiro – e único – brasileiro a ser indicado ao BET Hip Hop Awards, maior premiação do gênero no mundo. Confessional, o álbum, cuja capa traz a cabeça do rapper numa bandeja, revela um compositor falando mais consigo mesmo. Produzido por Coyote Beatz, “NU” tem apenas oito faixas e participações de Thiago Braga, Nagalli, MDN Beatz, Budah e Doug Now. Mais uma vez, Djonga fornece críticas sociais em suas letras, e tenta mostrar a realidade de milhares de jovens e adultos periféricos de todo Brasil, que são em sua maioria alvos de injustiça social e perseguição por sua cor e classe social. Se tem algo em comum em todos os álbuns do Djonga, é a angústia. Dessa forma, mesmo falando sobre as próprias vivências, a sensação ao fim de cada música é angustiante. “Meu coração parece um balde furado / Acho que o vazio me pegou em cheio”, essas são as últimas frases da faixa de abertura, “Nós”.
A música nos faz lembrar do disco anterior, “Histórias da Minha Área” (2020), que fala principalmente sobre a condição de ser negro em um país racista. No entanto, Djonga não suaviza o seu discurso. Quem segue o artista nas redes sociais deve ter reparado que ele deu um pausa. Em dezembro de 2020, ele desativou sua conta do Twitter e não apareceu mais no Instagram. “Sumi um pouquinho da cena / Oportunidade pra outros brilhar”, ele diz em “Ó Quem Chega”, canção cheia de referências a política e a sociedade. A indústria do rap sempre mudou rapidamente, mas o ritmo em que as novas tendências do hip hop se espalham e proliferam significa que muitos artistas podem se tornar profundamente influentes enquanto ainda são relativamente jovens. Dito isto, sua música está mais preocupada com as matérias-primas individuais do que com o que elas podem significar. As batidas são negligenciadas em passagens de baterias improvisadas, e o rap se transforma em declarações murmuradas sobre a incoerência do país. Embora às vezes possa se assemelhar a uma expansão indisciplinada, “NU” fornece muita clareza para o ouvinte paciente.
Você não pode impedir o Djonga de se aprofundar em uma linha específica ou um padrão de tambor repetido, assim como não pode impedir uma planta de abrir seu caminho para a luz. É a sua natureza. Sua voz, um bocejo forte o suficiente que fica em algum lugar entre se espalhar e um corredor sem fôlego tentando falar, é tão potente quanto as letras. Não faltam histórias sobre racismo – metáforas compactas e símiles são a arma escolhida pelo Djonga. Suas frases inteligentes vão do banal para o genuinamente profundo. Quando ele está nesta zona, sustenta um punhado de fortalezas em quase todas as músicas. Assim como os álbuns anteriores, “NU” possui uma forte introdução. As críticas sociais ainda existem – aqui, ele põe o dedo em várias feridas e expõe diversos problemas enfrentadas diariamente pelos pretos no Brasil. Liricamente, “Nós” é um pedido de socorro em nome de todos os negros do país; Djonga foi metaforicamente baleado e agora pede justiça pelos seus. Além disso, quando ele diz que o seu coração “parece um balde furado” e que o vazio o “acertou em cheio”, se inicia uma narrativa que se estende por todo o álbum.
A produção de “Nós” possui uma base instrumental com diversas variações na batida – as pancadas de tambor, chimbal e bateria são o auge da música. De fato, a produção acompanha perfeitamente o rápido fluxo do Djonga. Interessante também são as improvisações líricas e os sons de multidão. Na segunda faixa, “Ó Quem Chega”, ele diz agressivamente: “Olha o vacilão, já avistei de longe / Nem viu meu passado e quer viver o agora”. Aqui, ele tenta chamar a nossa atenção para uma sociedade que costuma punir a população negra sem qualquer chance de perdão. “Alvo sem ser Dumbledore / Talvez por isso nós é Severo / Confundem guarda-chuvas com fuzil / E falam que é eu que exagero”, ele cita um personagem do “Harry Potter” enquanto cria referências a história de Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, morto pela polícia por ter um guarda-chuva confundido com um fuzil. Seus compassos se repetem de vez em quando – ele se apoia na velha analogia das teclas de piano. Mais tarde, a romântica e melódica “Dá Pra Ser?” fornece versos como: “Mamãe tá gostando de te chamar de nora / Montou um apê na minha mente, é lá que ela mora”.
Carregada de declarações, “Dá Pra Ser?” mostra um lado movido pelo coração. Com participação de Budah, é uma música que marca a suavidade de sua voz. Vocalmente, ela possui um dos melhores versos do álbum. “Ninguém vai poder separar nosso amor / Seu jeito eu sei de cor / Cê sabe o meu valor”, ela canta de forma distante, conforme sua voz desvanece no final. É uma canção trap com influências de R&B e inesperados acordes de cavaquinho. Essa mesma sensação lírica surge na entrega sonhadora de “Me Dá a Mão”, onde ele se aprofunda em situações mais interpessoais. “E hoje eu só te peço: me dá a mão”, ele pede. É um inesperado SoundCloud rap com atmosfera amanteigada, sintetizadores e uma linha de baixo discreta fazendo a maior parte do serviço. Em “Ricô”, com participação de Doug Now, ele aborda as próprias glórias, mas preservando o teor social que conduz o restante do álbum: “Oitão destravado, de boné socado / Se o boy soubesse, sua cova não tinha cavado”. Apesar de todo o humor contido, Djonga ainda é capaz de pisar no freio para refletir. Os vislumbres de sua vida ao longo do álbum são esclarecedores. Mesmo com algumas transições inesperadas, “Vírgula” mantém uma atmosfera robusta.
É crua ao ponto de dar náusea; A mesmice se mantém presente. É provavelmente a música mais previsível e sem graça do repertório. É um trap com bateria consistente, chimbais, 808s e sintetizadores, além de linhas sem nenhuma relação aparente. Novamente, Djonga passeia por temas como racismo, superação, autoestima e ostentação. De fato, ele ostenta tudo que já conseguiu para sua família e para si com o seu trabalho. Ele também comenta sobre resgatar a auto estima das pessoas que o ouvem enquanto está gostando cada vez mais de si mesmo. Em “Xapralá”, ele está um pouco mais calmo, justificando a agressividade necessária das outras faixas. O refrão não possui tanta substância e é preenchido com frases simples, além de repetições sem sentido. Produzida por MDN Beatz, os vocais estão mais elevados, ao passo que o instrumental é preenchido por bateria, teclas radiantes e ruídos de guitarra. “É melhor desistir ou viver humilhado? / Coisas que passam na mente de gente que vem de onde vem / Ó, Lucas Penteado / Eu fui chamado pra viver daquilo / Mas preferi ser quem fala daquilo”, ele recita criando uma ligação com um participante do Big Brother Brasil.
A última faixa, “Eu”, encerra o álbum perfeitamente: Djonga amarra o projeto de forma inteligente e conceitualmente excepcional. Aqui, ele fornece diferentes metáforas e analogias bíblicas a fim de contextualizar suas rimas. Ele também cita Wilson Simonal, que foi perseguido pela mídia na época da Ditadura e só teve sua inocência provada depois de sua morte. A canção, inclusive, é introduzida por amostras de notícias sobre sua ascensão exibidas pelo Jornal Nacional. Sonoramente, “Eu” fornece uma série de loops imaculados que estalam com poeira e melancolia. As batidas imponentes complementam a personalidade exagerada do rapper diante de tantas referências líricas. Para entender as mensagens do Djonga, você precisa ouvir esse disco por completo. Ele disse que “NU” talvez seja seu último álbum, verdade ou não, o rapper continua fornecendo mensagens importantes de representatividade. Algumas músicas entram em conflito com outras, amplificando a aura de um artista que se recusa a quebrar o personagem, mesmo quando está quebrando por dentro – “NU” é um pedido de liberdade e justiça.