Os anos de formação, as glórias e as tragédias do grupo fundado pelos irmãos Young.
Algumas bandas conseguem ser mais do que clássicas, elas se tornam verdadeiras instituições. A elas até são atribuídos certos direitos que não cabem a qualquer grupo. Assim, uma verdadeira incógnita paira sobre a banda criada pelos irmãos Young em 1973. Durante todos esses anos de estrada, a vida do AC/DC tem sido tudo menos monótona. Dificuldade sempre foi o nome do meio da família Young – assim como aconteceu com vários astros do rock. Com seus irmãos mais velhos, Angus e Malcolm enfrentaram muitas dificuldades na infância, passada numa região complicada de Glasgow, Escócia, onde nasceram. Para completar, os dois baixinhos eram encrenqueiros na mais plena expressão da palavra. Não importava o tamanho do adversário, eles se viravam e botavam medo em todos os garotos da sua idade. Como definiu o escritor Mick Wall no livro “AC/DC – A Biografia”, eram “dois bostinhas que adoravam se meter em brigas”. Nos anos 60, os pais deles, William e Margaret, se viram sem trabalho num momento em que a pobreza e o desemprego assolavam o país. Assim, pressionados pela completa falta de condições de manter a família com dignidade, começaram a considerar a possibilidade de aderir à conhecida “Viagem por Dez Libras”.
Era um pacote lançado pelo governo australiano destinado àqueles que quisessem emigrar para o país: cada adulto pagaria apenas dez libras por passagem, enquanto as crianças viajariam de graça. Foi no início de 1963 que eles se mudaram para lá em busca de dias melhores. O que poucos sabem é que a vida na Austrália começou a melhorar para a família Young graças à música, mas não ao AC/DC. O irmão mais velho, George, já tinha começado a aprender a tocar guitarra desde o tempo em que moravam na Escócia e na nova terra passou a levar a música mais a sério. Junto com três amigos (um dos quais também teria sua trajetória ligada ao AC/DC, Harry Vanda), George montou o Easybeats. O rock de fácil assimilação rendeu ao quarteto seu primeiro contrato. Só que o primeiro single, “For My Woman”, não obteve o menor sucesso – em outras palavras, foi um retumbante fracasso. Dois meses depois, em maio de 1965, uma nova tentativa, dessa vez com a música “She’s So Fine”. Um pouco mais rápida e animada que a anterior, em menos de um mês era número #1 em toda a Austrália. Mais quatro semanas e ela continuava liderando a parada de singles.
Foi o começo de uma trajetória de sucesso que mudaria para sempre a vida da família Young. Chamado de “os Beatles da Austrália”, The Easybeats começou a colecionar sucessos, entre eles quatro canções no topo dos charts. George e o vocalista da banda, Steve Wright, assinavam todas as composições e começaram a ser conhecidos como “Lennon e McCartney australianos”. Além da mudança na condição financeira da banda, houve outra mudança na vida dos irmãos Young, já que era normal haver algumas dezenas de garotas histéricas na porta da casa da família – para desespero dos pais e alegria de Angus e Malcolm. E isso despertou o interesse nos irmãos em também seguir carreira musical. A primeira atitude dos dois foi deixar a escola assim que reuniram condições legais para isso. Malcolm fez isso em outubro de 1967 e Angus em dezembro de 1969. Logo o mais velho dos dois irmãos já estava dando os primeiros passos na música, tocando em bandas como Beelzebub Blues, Red House e Rubberband. E o agora celebridade George ajudava os irmãos mais novos na guitarra. O interessante é que nesse início Malcolm Young era um excelente guitarrista.
Assim, acabou ficando com a guitarra base e Angus, com a solo. E cabe nesse ponto um parênteses. Pela plasticidade e pela habilidade inerentes ao ofício, os solos são considerados um dos pontos altos em um show de rock – em certos casos, são a atração principal. Porém, o que sustenta o rock é a base. John Lennon, Keith Richards e tantos outros já mostraram que um riff bem sacado e uma base segura dão toda a sustentação que uma banda precisa. Até no heavy metal isso acontece. Dispostos a seguir os passos do irmão mais velho, os dois começaram a se dedicar à música. Outro detalhe de que nem todos se deram conta durante muito tempo é que, apesar de Angus ser a atração principal da banda ao lado de Bon Scott e depois de Brian Johnson, quem sempre esteve no comando do AC/DC foi Malcolm Young. O fato é que nesse meio é sempre preciso alguém que assuma a posição de liderança para fazer as coisas funcionarem – o que se pode discutir é a forma como essa pessoa faz isso. Mas o nome AC/DC não foi criação de Malcolm. Na verdade, foi a cunhada dos irmãos, Sandra, esposa de George, que viu um selo com essa inscrição em sua máquina de costura e sugeriu para a banda que os Young estavam criando.
Mas foi Malcolm quem teve a ideia que acabou se tornando uma das marcas registradas do AC/DC. Depois de alguns shows e algumas mudanças na formação (todas determinadas por ele), o guitarrista teve a ideia de fazer a banda abandonar os trajes compostos por jeans e camisetas e passar a usar algo mais elaborado, baseado principalmente no glam rock que começava a surgir. Era uma ideia que tinha tudo para dar errado, mas que não só mostrou quem de fato mandava na banda como teve consequências que permanecem até hoje. Pelo que consta, nunca mais se falou em trajes glam no AC/DC, mas Angus acabou virando sensação com seu uniforme escolar. Mas que isso, provocou uma verdadeira revolução no próprio Angus. Até então, ele era o guitarra tímido que ficava parado durante o show. Em entrevista à Rolling Stone anos atrás, ele confirmou: “Eu era muito tímido, eu me encolhia no palco. Só que aquela roupa me encorajou”. Foi então que Angus começou a criar sua “persona” em cena, que atingia o clímax no seu solo. Ali ele faz o “duck walk” inventado por Chuck Berry, pula, faz caretas, se joga no chão, gira, etc. Tudo solando com habilidade e o volume no talo.
Ou seja, um show à parte, aquele momento que todos esperam numa apresentação do grupo. Praticamente todas as bandas têm em seus shows momentos assim, mas o do AC/DC é um dos mais intensos. A essa altura, com Angus se tornando o centro das atenções, quem começava a correr risco na banda era Dave Evans. Angus e principalmente Malcolm repetiam como um mantra que o AC/DC se tornaria “a maior banda do mundo” e quem não pensasse como eles eram sumariamente sacado. Isso aconteceu com Neil Smith e Noel Taylor, que acabaram sendo demitidos. Inábil, Evans não só começou a se desentender com Angus e Malcolm, mas também com George, que cada vez mais atuava com a banda – The Easybeats tinha encerrado atividades em 1969 e logo ele e seu antigo parceiro, Harry Vanda, começariam a trabalhar como produtores. Evans acabou ficando para fazer história: foi ele o vocalista do primeiro single do AC/DC, “Can I Sit Next to You, Girl”, lançado em 22 de julho de 1974. Porém, mais do que nunca ficava evidente que ele não era o vocalista certo para uma banda que encontrava seu próprio estilo e se mostrava cada vez mais incendiária.
Mesmo assim, foi com Dave Evans que o AC/DC fez seus primeiros shows até então, abrindo para Lou Reed em sua primeira turnê australiana. Foram nove apresentações, incluindo algumas para mais de 5 mil pessoas – e muita briga com a equipe do compositor americano que não queria liberar toda a potência do equipamento de som para os australianos. Alguns berros de George resolveram a questão. No final de agosto daquele ano a banda se apresentou no Pooraka Hotel em Adelaide, Austrália, e, após o show, um cantor amigo deles que estava na plateia falou para os Young: “Adorei a banda, mas o vocalista é uma merda”. O nome desse amigo? Bon Scott. Se os irmãos Young eram dois encrenqueiros quando jovens, Ronald Belford Scott era muito, mas muito pior. Bebedeiras e brigas não eram nada perto do que ele aprontava. Bon chegou à Austrália de forma semelhante aos Young. Também nascido na Escócia, seus pais emigraram quando ele tinha 6 anos. Porém a motivação foi completamente diferente da família de Angus e Malcolm. Chick e Isa, pais de Bon, eram aventureiros e a possibilidade de recomeçar a vida do outro lado do mundo soava excitante para eles – uma irmã de Isa morava por lá e falava maravilhas do lugar.
Bon Scott logo começou a mostrar a que veio. O ápice aconteceu aos 16 anos, quando foi acusado de fazer sexo com uma menor de idade e roubar 45 litros de gasolina, entre outros delitos menores. Foi condenado a dois anos em um reformatório – que, na prática, era uma prisão, com direito a cela solitária e tudo. Saiu de lá nove meses depois e continuou exatamente o mesmo – senão pior. Quando conheceu os irmãos Young, Bon havia acabado de se estropiar num acidente de moto – completamente embriagado, bateu de frente num carro. Como saldo, três dias em coma, quase nenhum dente inteiro na boca e fraturas em várias partes do corpo – maxilar, várias costelas, uma perna, um braço e o nariz. Ele ainda se arrastava com a ajuda de uma bengala quando foi convidado para participar de uma jam com Angus, Malcolm e alguns amigos. Mesmo assim, a saída de Evans foi lenta e demorada. Dois meses se passaram, até que Malcolm o chamasse de lado e dissesse: “Bem, você está fora”. Dave Evans tem uma teoria bem pessoal para explicar sua saída da banda. Já da parte da banda, as rusgas parecem não ter sido resolvidas nem trinta anos depois.
Em entrevista concedida em 2003, Malcolm resmungou: “Toda vez que vamos à Austrália, aparece alguma entrevista dele (Evans) no jornal falando de como ele colaborou para que o AC/DC se tornasse o que é hoje. O dia em que nos livramos dele foi o dia em que a banda começou”. Com Bon Scott na banda, as coisas começaram a mudar para o AC/DC. Os covers que dominavam o repertório foram sendo paulatinamente deixados de lado em benefício de músicas próprias que começaram a surgir. A composição, via de regra, ficava a cargo de Angus e Malcolm, enquanto Bon respondia pelas letras – normalmente falando de sexo (“Girls Got Rhythm”, “Whole Lotta Roise”, “Dirty Deeds Done Dirty Cheap”), da vida na estrada (“It’s a Long Way to the Top [If You Wanna Rock’n’Roll]”) ou simplesmente sobre rock (“High Voltage”, “Rock’n’Roll Damnation”). A combinação entre essas, digamos assim, crônicas urbanas que Bon Scott escrevia e as músicas diretas e cativantes de Angus e Malcolm se mostrou mais do que certeira. Ela garantiu uma sequência de discos que deixaram marcas definitivas na história do rock. E neste momento em que a banda passou a adotar o gênero que a tornou mundialmente conhecida, cabe tratar de um outro assunto: afinal, qual o estilo musical do AC/DC?
Muita gente coloca o quinteto no balaio do hard e/ou do heavy metal, mas, olhando de forma bem fria e atenta, dá para concluir que eles também têm fortes influências do blues. Heavy, hard, rock ou blues, a verdade é que a música do AC/DC começou a conquistar o mundo. Não foi algo fácil nem rápido, mas unindo determinação, um som consistente e shows transbordando energia, as coisas acabaram acontecendo. A presença marcante de Bon Scott nos palcos não ofuscava o show à parte que era Angus em cena. Sua imagem passou a ser tão importante que ele estampa sozinho as capas de vários discos do AC/DC – e quando surge acompanhado pela banda, sua posição é sempre de destaque. E no seu show pessoal durante o solo, passou a fazer parte um desajeitado strip-tease que culminava com o guitarrista baixando as calças e mostrando o traseiro para o público. Tudo ia bem para a banda, enfim. Conseguira fixar uma formação, com Cliff Williams no baixo e Phil Rudd na bateria, e colecionava números invejáveis, com músicas no topo das paradas, vendas milionárias e turnês mundiais. Tudo que os irmãos Young almejavam tinha sido conquistado. Até que veio o fatídico 19 de fevereiro de 1980.
Se a máxima “viva rápido, morra cedo” se aplica a alguém nessa vida, a primeira pessoa que vem à mente deve ser Bon Scott. Engana-se quem pensa que as responsabilidades de estar em uma banda mudaram o comportamento do vocalista. Ele continuava arrumando suas encrencas e bebendo muito. Naturalmente, um dia o preço pelos excessos seria cobrado. E isso aconteceu entre 18 e 19 de fevereiro de 1980. Scott saiu com seu amigo Alistair Kinnear e os dois beberam para valer. Voltaram para casa de Alistair no carro deste, um Renault, e lá chegando o amigo não conseguiu acordar Bon, nem tirá-lo do carro. Mas no dia seguinte, ao abrir o carro, encontrou o cantor na mesma posição “sem respirar”. Saiu voando para o hospital, mas só para confirmar o que já se sabia: Bon Scott foi declarado morto por “ingestão excessiva de álcool”. Nada de inalação de vômito ou coisa parecida. No laudo do legista estava escrito “morte acidental”. O choque foi enorme em todos os sentidos. Porém, não dava para pensar em parar. O próprio pai de Bon disse que a banda deveria prosseguir. Começou então a busca por um novo vocalista e o escolhido foi um improvável músico de uma banda pequena que aos 33 anos já estava quase desistindo de sua carreira musical.
Brian Johnson jamais imaginou que fosse conseguir ser aprovado no teste para cantar no AC/DC. “Tinha certeza de que iam escolher algum figurão”, ele declarou a Mick Wall para o livro “AC/DC – A Biografia”. E logo no primeiro show ele entendeu o que era ter Malcolm Young como chefe. Feliz da vida por estar finalmente numa banda grande, ele não parava de falar, agradecendo-os pela forma como o recebeu e ao público, que estava sendo sensacional com ele. Brian realmente foi muito bem aceito pelo público e pela crítica, algo até surpreendente para alguém que substituía um frontman tão carismático como Bon e que ainda por cima tinha morrido em circunstâncias trágicas. E mesmo que houvesse algumas oscilações nos números, as vendas e as posições dos discos da banda nos charts eram sempre de destaque. Para se ter uma ideia, dois dez discos de inéditas que a banda lançou com Johnson, apenas “Rock or Bust” (2014) não foi certificado Disco de Platina no mercado mais concorrido do mundo, o norte-americano – e, vale lembrar, o álbum saiu em 2014, época em que as vendas de discos físicos já tinham despencado em todo o mundo. Sucediam-se as turnês milionárias e mundiais, incluindo três passagens pelo Brasil.
Como prova maior de sua influência no mercado musical, inúmeras bandas surgiram fazendo uma música nitidamente influenciada pelo quinteto. A banda prosseguia sua trajetória, agora num ritmo mais lento, como acontece com todo grupo formado por músicos veteranos, mas ainda continuava na ativa. No entanto, em algum momento nos últimos anos parece que um inferno astral se abateria sobre o AC/DC. O primeiro perrengue foi a doença de Malcolm. Começou a ter problemas de memória em 2010, até ser diagnosticado com demência. O guitarrista sofria, antes dos shows, repassando as músicas que tinha tocado praticamente todos os dias pelos últimos trinta anos para se lembrar dos detalhes. Até que não deu mais. Em abril de 2014, a banda anunciou que Malcolm estava sendo internado e que Steve Young (filho de Stephen Young, irmão mais velho de Angus e Malcolm) seria o novo guitarrista. Quando isso parecia solucionado, o baterista Phil Rudd começou a “dar defeito”. No melhor estilo “delinquente”, em novembro de 2014, foi acusado de tramar a morte de duas pessoas na Nova Zelândia (onde vive desde os anos 80) e preso por porte de drogas.
Como ele já havia dado problema na gravação de “Rock or Bust” (atrasava ou não aparecia nas sessões de gravação), Angus perdeu a paciência: “Ele que criou tudo isso. É um grande baterista e fez muitas coisas conosco, mas parece outra pessoa. Não é o Phil que conhecemos lá no passado”. E mesmo com Rudd bradando que o posto de baterista do AC/DC ainda era dele, a banda foi para a estrada com Chris Slade nas baquetas. E então surgiu o problema com Brian Johnson. Não se sabe se por conta do som nos palcos com o AC/DC ou se por sua paixão pelo automobilismo, mas o fato é que ele foi obrigado a se afastar dos palcos sob risco de ficar permanente e completamente surdo. Como desgraça pouca é bobagem, em julho de 2016 o baixista Cliff Williams anunciou que, após o final da turnê “Rock or Bust World Tour”, estaria se aposentando e se afastando de vez da indústria musical. Ele alegou que um dos motivos para essa decisão teriam sido as várias mudanças pelas quais a banda passou recentemente, que a teriam descaracterizada. Assim, o futuro do AC/DC se tornou uma tremenda incógnita. Vários artistas da geração do AC/DC estão se aposentando ou encerrando atividades e para Angus Young deve ser realmente complicado tocar o negócio adiante com tudo que estava acontecendo.
Felizmente, “POWER UP” (2020) marcou o inesperado retorno de Brian Johnson, Phil Rudd e Cliff Williams. O disco também se tornou o primeiro da banda desde a morte de Malcolm Young em 2017, servindo como uma homenagem a ele, de acordo com Angus. “Este disco é praticamente uma dedicatória a Malcolm, meu irmão. É uma homenagem a ele como ‘Back in Black’ foi uma homenagem a Bon Scott”, ele disse. Em 2018, começaram a circular rumores de que o AC/DC estava trabalhando em seu décimo sétimo álbum. Johnson, Rudd, Angus Young e Stevie Young foram fotografados em agosto de 2018 num estúdio de gravação em Vancouver, Canadá, de propriedade de Bryan Adams. Os rumores foram posteriormente confirmados como verdadeiros, com o disco sendo gravado lá durante um período de seis semanas com o produtor Brendan O’Brien, que também supervisionou “Black Ice” (2008) e “Rock or Bust” (2014). Certamente, o AC/DC deixou um legado valiosíssimo e suas músicas passaram com louvor pelo teste do tempo – sua rica história sempre será lembrada. É complicado para nós, fãs de música, imaginar um mundo sem o AC/DC, mas, como dizem, o tempo é inexorável e o fim pode estar próximo para eles e para muitas outras bandas.